A Fresta é uma coluna quinzenal dedicada às realizações do movimento surrealista e seus entornos.
Alexandrian em cinco duplas:
uma quina sobre o escritor Sarane Alexandrian
PARTE I:
O argumento dos “Sessenta enredos (…)” e
algumas balizas das dunas de Bagdá às campinas da França
Argumento
Na época em que decidi começar meu primeiro romance, O homem das lonjuras, tantos enredos me passaram pela cabeça que cai na tentação de redigir, ao invés daquele romance, o catálogo descritivo de todos os romances que então seria conveniente escrever para se tornar um romancista ideal.
Dizia a mim mesmo:
O melhor de um romance é o resumo de sua história. Dito de outro modo, um romance só é bom se, quando a gente conta seu enredo a um terceiro, esse enredo dá vontade de ler a obra em si. Quando temos um enredo original, todo resto é questão de rotina, de técnica, de trabalho artesanal paciente e monótono. Consequentemente, ao invés de perder tempo ao longo de meses ou mesmo de anos desenvolvendo um enredo ficcional, a gente pode se contentar entregando aos leitores um embrião que os incitará a imaginar de cabo a rabo o romance realizável ao qual ele corresponde.
Este catálogo haveria de compreender cento e vinte e sete enredos de romances, cada um dos quais indicando seu título e os nomes de seus protagonistas. A esse conjunto caberia ilustrar todos os gêneros possíveis da arte romanesca — tradicionais ou inovações — e abrir perspectivas singulares. Depois de ter estabelecido uma dúzia de sinopses renunciei ao meu projeto para não me privar, logo nos meus primeiros passos, do prazer da sonhação escrita tal como ela é proporcionada pelas circunvoluções de um romance ou de um conto que se desenvolve de maneira normal. Entretanto, foi em função dessa preocupação que fiz da dupla de heróis de O homem das lonjuras romancistas antitéticos: Pascal Maurin, o “humanista grave”, e César Birène, o “humanista tirador de sarro”, que ficam toda hora contando um para o outro os enredos de seus romances: inclusive, as Memórias de uma caneta, de Birène, e a frase de cento e cinquenta páginas que ele empreende, foram diretamente tiradas daquele meu catálogo inicial.
Trinta e cinco anos depois, resolvi retomar aquela lista explícita de enredos de romances, os reduzindo a sessenta, aliás um número simbólico (60 = 6 x 10, “perfeição da obra” e “plenitude do ser” se multiplicando segundo os princípios da aritmosofia revelados em minha História da filosofia oculta. Resolvi fazer isso porque o espírito literário do fim do século XX e início do XXI se tornou tão reacionário, convencional, mercantil e decadente, que todo e qualquer livro que indiretamente tire sarro disso será, de um jeito ou de outro, um escrito liberador. Até hoje ninguém ainda ousou conceber um livro desta ordem, nem mesmo Borges, que faleceu sem ter dado à luz nada semelhante, e tampouco Queneau, cujos Exercícios de estilo [1] são variações sobre uma mesma história. Não é menos verdade que também jogo com todos os recursos da retórica, o que eles de fato souberam fazer como virtuoses em algumas de suas tentativas.
Eliminando minha primeira lista de sub-gêneros contestáveis, como o “romance de cavalaria” (que, após o fim dos tempos feudais, se confunde com o romance de guerra ou com o romance de aventuras, da mesma maneira que o “romance cortês” se tornou o romance sentimental) ou o “romance em versos” (que desde a Jocelyn de Lamartine [2] pertence mais à história da poesia), afirmo portanto que há hoje sessenta maneiras de escrever um romance. O romancista que pretende ser ultramoderno portanto dispõe de muitas opções.
Quando em um jornal um crítico resume o enredo de um romance ao qual tece elogios, com frequência temos a impressão de que ele está simplesmente apresentando uma reportagem, um documentário, um testemunho sobre um fenômeno da sociedade ou de uma autobiografia. Os próprios autores acabam por não mais saber o que é um verdadeiro enredo de romance. Se não remediarmos este descuido, condenaremos o romance a desaparecer, ou a ser apenas o modo de expressão da mais baixa literatura.
Aliás, discutindo isso com romancistas e críticos profissionais, me dei conta de que eles inclusive ignoram o que é exatamente um romance naturalista, expressionista, futurista, surrealista, ucrônico, romântico, unanimista ou existencialista; me dei conta de que eles são incapazes de dizer como poderíamos renovar o romance policial, histórico, fantástico, erótico, burlesco, político ou delirante; e de que eles não têm a menor ideia sobre gêneros romanescos novos que, nesta aurora do século XXI, os romancistas deveriam explorar em suas histórias e os críticos em seus artigos.
Ao invés de fazer uma obra pedante para ficar explicando isso, sem dúvida será bem mais divertido, e igualmente instrutivo, oferecer aos leitores sessenta análises de romances tão diferentes entre si que com elas poderemos aprender brincando todos os segredos da criação romanesca. Tenho plena consciência de ter assumido um desafio sem precedentes: escrever um ensaio detalhado sobre o romance e suas diversas possibilidades modernas, comentando exemplos imaginados por mim mesmo com esse único propósito. Não se trata de um tour de force ordinário, confiem em mim, ser a um só tempo ensaísta e romancista em um mesmo livro, e assumir a responsabilidade de inventar romances dos quais fazemos a crítica metódica, de modo a colocar totalmente em questão as atuais técnicas de narração imaginativa.
Este catálogo não é uma série de paradoxos nem uma coletânea de contos engenhosamente distribuídos segundo leis preconcebidas. Ele apresenta verdadeiros enredos originais, sendo que eu seria capaz de tirar de cada um deles um romance se alguém me desafiasse a isso. De resto, estes sessenta romances saíram todos de minha cabeça e, um atrás do outro, me inspiraram episódios sobre os quais não irei falar. Meu objetivo supremo é demonstrar que todos os romances do mundo, sejam eles realmente escritos ou apenas esboçados pelo pensamento, pertencem a um dos gêneros evocados a seguir. Tenho certeza de que os diletantes apaixonados por literatura e os jovens romancistas de imaginação fértil vão ficar encantados com o fato de eu ter ampliado o campo do imaginário a um tal ponto. O que faz falta hoje na França não são criadores inspirados, mas críticos capazes de compreendê-los, entusiasmar-se com eles e celebrá-los com uma orgulhosa eloquência. Há um pedantismo moderno, defensor de valores culturais falsos em detrimento dos verdadeiros, que é o pior inimigo da novidade nas letras. Convém volta e meia opor a isso livros como este aqui, onde fazemos o que aquele pedantismo se omite de fazer: convencer o público de que o saber pode ser fecundado pelo sonho, de que a seriedade por ser temperada pelo humor, e de que a imaginação é um jogo ainda mais excitante quando suas regras lhe oferecem de saída um itinerário preciso a ser percorrido, sem com isso restringir a sua liberdade.
Sarane Alexandrian
tradução por Natan Schäfer
Algumas balizas das dunas de Bagdá às campinas da França
Já que publiquei aqui n’A Fresta três partes mais uma acerca desse hasard — um azar de pé quente — que escapa à faculdade de calcular e se manifesta de maneira inquietante, cumpre iniciar uma quina destinada a, desta vez, apresentar uma figura apenas: Sarane Alexandrian (1927 – 2009), um daqueles férteis escribas que se vincularam às atividades surrealistas assim que findara a Segunda Grande Guerra.
Lucien Alexandrian, que uma babá indiana apelidara Sarane, nasceu em Bagdá, mas sua mãe era da França e seu pai da Armênia. Apesar das dificuldades que sempre, ainda que em graus diferentes, as famílias enfrentam, a de Sarane parecia desfrutar de um status bastante agradável. Este detalhe é fácil de discernir para quem tem em vista que seu pai era um dentista — que cuidava da saúde bucal em geral — e teve dentre seus clientes a célebre Agatha Christie e Faiçal I, rei das terras iraquianas durante a década de vinte.
Certamente em A aventura em si (Mercure de France, 1990) Alexandrian narra vividamente essa infância entre Tigre e Eufrates, areias e estrelas. Mas sequer pude ler esta narrativa, uma vez que, nas estantes das livrarias, Alexandrian é peça rara e, ainda que dê as caras, cara.
Pesares à parte, as balizas de sua vida reunidas aqui e ali em manuais e similares, e especialmente em algumas páginas da narrativa Sarane Alexandrian (…), em que C. Dauphin apresenta seu mestre de maneira detalhada e eficiente, bastam para dar uma ideia da ambiência da qual Alexandrian vem, e servem para traçar as bases da universalidade que iria marcar aquele que escreveu A magia sexual e também para erguer um mirante: de lá de cima as figuras que estavam distante se fazem imediatas.
Assim, basta que se regresse àquelas balizas, basta que se avance na linha de sua vida, para ficar ciente de que aquela infância em Bagdá seria bem curta. Ainda na primeira juventude, Alexandrian teve de se mudar para Paris, já que era lá que receberia a mais eficaz ajuda para se curar de uma paralisia infantil. Assim, passaria a viver na casa de mami, a mãe de sua mãe.
Apesar dessas vicissitudes, a permanência de Alexandrian na capital iraquiana bastara para fazer dele um imigrante singular: ainda em calças curtas era falante de várias línguas. Criança esperta e abastada, na capital francesa entra para a turma de um célebre Lycée que teve em sua equipe figura da estatura de Stéphane Mallarmé e Jean-Paul Sartre.
Sequer uma vírgula ia mal até que, prestes a fazer a festa de suas treze primaveras, Alexandrian vai passar as férias, ele e a mami, nas campinas às margens da Aquitânia, lá para as bandas da Espanha, nas terras que viriam a batizar a limusine. Mas é 1939 e as vaidades teriam de ceder: eis que advém a Segunda Grande Guerra. Ela fará que, daqui a um par de semanas, a gente reveja Sarane mais uma vez distante da terra que era seu lar e, aliás, prestes a vivenciar uma das experiências mais determinantes de sua vida.
Natan Schäfer
NOTAS
[1] Exercícios de estilo, de Raymond Queneau, foi traduzido por Luiz Rezende e publicado pela Imago em 1995.
[2] Jocelyn, de Alphonse De Lamartine, foi traduzido para o português pelo Barão de Paranapiacaba pela Tipografia Nacional em 1875.
Fotografia: Vista apanhada de cima do túnel nº 6 – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).