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Donald Trump é um bom presidente

por Michel Houellebecq (tradução de Leopoldo Cavalcante)
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Tradução realizada pelo editor-chefe Leopoldo Cavalcante.

Faltando menos de um mês para o lançamento de seu novo livro Sérotonine (sem título confirmado no Brasil), o polêmico escritor Michel Houellebecq escreveu um artigo de opinião para a Harper’s Magazine sobre o presidente Donald Trump. A Aboio traz o texto em primeira mão para os leitores lusófonos.

A perspectiva de um estrangeiro

Sendo honesto, eu gosto bastante de americanos; conheci várias pessoas adoráveis nos Estados Unidos, e eu empatizo com a vergonha sentida por vários americanos (e não apenas do “Intelectuais nova-iorquinos”) em ter um palhaço escandaloso como líder.

Contudo, eu tenho de pedir – e eu sei que o que estou solicitando não é fácil para vocês – que vocês considerem as coisas, por um momento, do ponto de vista de um não-americano. Eu não digo “do ponto de vista de um francês”, o que seria pedir demais; vamos dizer, “do ponto de vista do resto do mundo”.

Nas numerosas ocasiões em que fui questionado sobre a eleição de Donald Trump, eu respondi que eu estou pouco me fodendo. A França não é Wyoming ou Arkansas. A França é um país independente, mais ou menos, e logo será totalmente independente mais uma vez quando a União Europeia for dissolvida (quanto mais cedo, melhor).

Os Estados Unidos da América não é mais a principal potência mundial. Foi por um bom tempo, por quase todo o decorrer do século vinte. Não é mais. Eles continuam um grande poder, um entre vários. E isso não é necessariamente má notícia para os americanos. São ótimas notícias para o resto do mundo.

Minha resposta é um tanto exagerada. Temos a contínua obrigação de ter ao menos o módico de interesse na vida política americana. Os Estados Unidos continuam o líder mundial em poderio militar e infelizmente ainda têm de quebrar o hábito das intervenções crescentes ao redor de suas fronteiras. Eu não sou um historiador, e eu não sei muito sobre história antiga – por exemplo, eu não saberia dizer se Kennedy ou Johnson deveria ser mais culpado pela deplorável questão do Vietnã –, mas eu tenho a impressão de que faz um bom tempo desde a ultima guerra vencida pelos Estados Unidos, e isso por pelo menos cinquenta anos de intervenções militares no estrangeiro, sejam admitidas ou clandestinas, que não foram nada além de uma sucessão de desgraças culminadas em fracassos.

Vamos voltar todo o caminho para a ultima moralmente inquestionável e militarmente vitoriosa intervenção dos Estados Unidos, propriamente sua participação na Segunda Guerra Mundial: O que teria acontecido caso os Estados Unidos não tivesse entrado na guerra (uma desagradável história alternativa)? Sem dúvidas, o destino da Ásia teria sido fortemente alterado. O destino da Europa também, mas provavelmente um tanto menos. De qualquer jeito, Hitler teria perdido mesmo assim. O que é mais provável é que as tropas de Stalin teriam alcançado Cherbourg. Alguns países europeus que foram poupados do tormento do comunismo o teriam sofrido.

Um cenário desagradável, eu admito, mas breve. Quarenta anos depois, a União Soviética teria colapsado do mesmo jeito, simplesmente porque ela era sustentada sobre uma falaciosa e ineficaz ideologia. Qualquer que seja as circunstâncias, qualquer que seja a cultura na qual o comunismo tenha se estabelecido, ele não conseguiu sobreviver por nem mais que um século – em nenhum país do mundo.

A memória do povo não é muito longa. Os húngaros, os polacos, os checos de hoje – eles realmente lembram que já foram comunistas? O jeito que eles vislumbram o que está em jogo na Europa difere tanto do ponto de vista dos europeus ocidentais? Parece extremamente improvável. Adotando por um momento a linguagem da centro-esquerda, o “câncer populista” não está limitado ao Grupo Visegrád [aliança entre Hungria, Polônia, República Checa e Eslováquia]. Sobretudo, os argumentos usados na Áustria, na Polônia, na Itália, e na Suécia são exatamente os mesmos. Uma das constantes na longa história da Europa é a luta contra o islã; hoje, essa luta simplesmente retornou para o primeiro plano.

Eu li sobre as táticas repulsivas da CIA em Nicarágua e Chile apenas em romances (quase exclusivamente romances americanos), então eu não posso fazer acusações definitivas sobre esses pontos. As primeiras intervenções militares americanas que consigo realmente lembrar são aquelas dos dois Bushes, especialmente do filho. A França recusou se juntar a ele em sua guerra contra o Iraque – uma guerra que era igualmente imoral e estúpida; A França estava certa, e meu contentamento em apontar isso é enorme, porque a França poucas vezes esteve certa desde… digamos, desde o tempo de de Gaulle.

Progresso enorme foi feito sob Obama. Talvez ele tenha sido laureado com o prêmio Nobel da paz um pouco cedo demais; mas, na minha opinião, ele realmente o mereceu mais tarde, no dia em que ele recusou apoiar o ataque proposto na Síria por François Hollande. As tentativas de Obama em reconciliações raciais foram menos bem-sucedidas, e eu não conheço seu país bem o suficiente para entender exatamente por quê; tudo que posso fazer é lamentar o fato. Mas, ao menos, Obama pode ser louvado por não adicionar a Síria na longa lista (Afeganistão, Iraque, Líbia, e outros que eu estou sem dúvidas esquecendo) de terras muçulmanas onde o Ocidente cometeu atrocidades.

Trump segue e amplifica a politica de retirada iniciada por Obama; essa é uma ótima notícia para o resto do mundo.

Os americanos estão parando de encher nosso saco.

Os americanos estão deixando-nos existir.

Os americanos pararam de tentar espalhar a democracia pelos quatro cantos do globo. Aliás, que democracia? Votar a cada quatro anos para eleger um chefe de estado – é isso democracia? No meu ponto de vista, há apenas um país no mundo (um país, não dois) que desfruta de instituições parcialmente democráticas, e esse país não é os Estados Unidos da America; é a Suíça. Um país de outra forma notável pela sua nobre política de neutralidade.

Os americanos não estão mais preparados para morrer pela liberdade de imprensa. Aliás, que liberdade de imprensa? Desde que tenho doze anos, vi o escopo de opiniões admissíveis na mídia progressivamente diminuindo (eu escrevo isso logo após o lançamento de uma nova caça às bruxas na França contra o notório escritor antiliberal Éric Zemmour).

Os americanos estão cada vez mais dependentes em drones, os quais – se eles soubessem como usar essas armas – poderia ter-lhes possibilitado reduzir o número de baixas civis (mas o fato é que os americanos sempre foram incapazes, praticamente desde o nascimento da aviação, de levar adiante bombardeios efetivos).

Mas o que é mais impressionante sobre as novas políticas americanas é certamente a posição do país sobre o comércio, e lá Trump está sendo como um sopro sadio de ar puro; vocês realmente fizeram certo elegendo um presidente originado da chamada “sociedade civil”.

O presidente Trump rasga tratados e acordos comerciais quando ele pensa que foi errado assiná-los. Ele está certo sobre isso; lideres devem saber como usar o período de reflexão e largar maus negócios.

Diferente dos liberais (que são, em sua maneira, tão fanáticos quanto comunistas), o presidente Trump não considera o livre-comércio internacional o princípio e o fim do progresso humano. Quando o livre-comércio favorece os interesses americanos, o presidente Trump é a favor do livre-comércio; em casos contrários, ele acha o obsoleto protecionismo inteiramente apropriado.

O presidente Trump foi eleito para proteger os interesses dos trabalhadores americanos; ele está preservando os interesses dos trabalhadores americanos. Durante os últimos cinquenta anos na França, desejar-se-ia que esse tipo de atitude fosse mais recorrente.

O presidente Trump não gosta da União Europeia; ele acha que não temos muito em comum, especialmente não “valores”; e eu fico feliz, porque que valores? “Direitos humanos”? Sério? Ele prefere negociar diretamente com os países individualmente, e eu acredito que isso seria na verdade preferível; eu não acho que a força necessariamente venha da união. Acredito que nós na Europa não temos nem uma língua comum, nem valores comuns, tampouco interesses comuns, que, em uma palavra, a Europa não existe, e que não irá nunca constituir um povo ou sustentar uma possível democracia (veja a etimologia do termo), simplesmente porque ela não quer constituir um povo. Em resumo, Europa é apenas uma ideia burra que foi gradualmente tornando-se um pesadelo, do qual nós eventualmente acordaremos. E em sua esperança por um “Estados Unidos da Europa”, uma referência óbvia aos Estados Unidos, Victor Hugo apenas deu mais prova de sua grandiloquência e estupidez; sempre me faz bem criticar Victor Hugo.

Lógico, o presidente Trump ficou contente com o Brexit. Lógico, também fiquei; meu único pesar foi que os britânicos se mostraram mais uma vez serem mais corajosos do que nós em face de um império. Os britânicos me irritam, mas sua coragem não pode ser negada.

O presidente Trump não considera Vladimir Putin um indigno parceiro de negócios; nem eu. Não acredito que a Russia foi designada para o papel de guia universal da humanidade – minha admiração por Dostoievski não vai longe assim – mas eu admiro a persistência da ortodoxia em suas próprias terras, eu acho que o catolicismo romano faria bem inspirando-se nela, e eu acredito que o “diálogo ecumênico” poderia ser utilmente limitado ao dialogo com a Igreja Ortodoxa (Cristianismo não é só a “religião do Livro”, como dizem; é também, e talvez acima de tudo, a religião da Encarnação). Estou dolorosamente consciente que a Grande Cisma de 1054 foi, para os cristãos europeus, o começo do fim; mas, em contrapartida, acredito que o fim não é certo até chegar.

Parece que o presidente Trump até conseguiu domar o louco da Coreia do Norte; eu achei esse feito positivamente requintado.

Parece que o presidente Trump recentemente declarou, “Você sabe o que eu sou? Eu sou um nacionalista!” Eu também, precisamente isso. Nacionalistas conseguem falar um com o outro; com internacionalistas, estranhamente, conversar não funciona tão bem.

A França deveria deixar a OTAN, mas talvez esse passo seja desnecessário se a falta de fundos operacionais faça a OTAN desaparecer por si só. Isso seria um motivo a menos para preocupação, e um a mais para cantar louvores ao Presidente Trump.

Em resumo, o presidente Trump me parece um dos melhores presidentes americanos que já vi.

No nível pessoal, ele é, claro, deveras repugnante. Se ele teve relações com uma atriz pornô, isso não é problema meu, estou pouco me fodendo, mas fazer graça de deficientes é deselegante e um mau comportamento. Com propostas equivalentes, um autêntico cristão conservador – o qual seria dizer uma pessoa honrável e moral – teria sido melhor para a América.

Mas talvez isso possa acontecer na próxima vez, ou na vez seguinte, se vocês insistirem em manter Trump. Em seis anos, Ted Cruz ainda será relativamente jovem, e certamente existem outros excelentes cristãos conservadores. Vocês serão um pouco menos competitivos, mas vocês redescobrirão a graça de viver dentro das fronteiras de seu magnífico país, praticando honestidade e virtude. (Com algumas instâncias de infidelidade matrimonial. Ninguém é perfeito, vocês deveriam relaxar sobre isso. Até nos melhores filmes americanos, há cenas de arrependimentos conjugais que são difíceis de lidar, especialmente quando crianças intervêm. Eu não quero ser o “cara francês licencioso”, um personagem que eu abomino, eu apenas estou empenhado em sustentar um nível mínimo de hipocrisia, sem a qual nenhuma vida humana é possível).

Vocês irão exportar alguns produtos (marcas indispensáveis: Marshall, Klipsh, Jack Daniel’s). Vocês irão importar alguns outros (nós na França temos coisas para vender). No fim, isso provavelmente não vai valer muito, tanto em volume comercial quanto em trocas internacionais. Uma redução no comercio internacional é um objetivo desejável, e um que pode ser atingido dentro de um curto período de tempo.

Algumas ações de protesto podem acelerar o processo. Sem muita dificuldade, eles podem ser limitados aos bens e à propriedade. Há um número limitado de marinheiros a bordo de qualquer navio cargueiro; no caso de um ataque, seria fácil avisar ao capitão e evacuá-los, evitando qualquer conflito.

Seu militarismo messiânico irá desaparecer completamente; o mundo irá apenas respirar de alívio.

O Vale do Silício e, em menor escala, Hollywood terão de lidar com a aparição de competidores formidáveis; mas o Vale do Silício, como Hollywood, permanecerá preso a importantes setores do mercado.

A China diminuirá suas ambições arrogantes. Esse desfecho será difícil de alcançar, mas, no fim, a China irá limitar suas aspirações, e a Índia fará o mesmo. A China nunca foi uma potência imperialista global, nem a Índia – diferente dos Estados Unidos, seus objetivos militares são locais. Seus objetivos econômicos, é verdade, são globais. Elas têm algumas vinganças econômicas para realizar, e elas as estão realizando nesse momento, o que é algo a se preocupar; Donald Trump está bem certo em não se deixar ser pressionado. Mas, ao fim e ao cabo, suas polêmicas irão apaziguar-se, suas taxas de crescimento irão diminuir.

Tudo isso irá acontecer no período de uma vida humana.

Vocês têm de se acostumar à ideia, digno povo americano: no final, talvez Donald Trump tenha sido o tormento necessário a vocês. E vocês serão sempre bem-vindos como turistas.


Michel Houellebecq é um autor francês, produtor de filmes, poeta, músico e fotógrafo. Seu último romance publicado no Brasil foi Submissão. Ganhou o Prêmio Goncourt por La carte et le Territoire (2010, publicado em 2012 pela Editora Record).


Leopoldo Cavalcante nasceu em Fortaleza, Ceará. É editor da revista Aboio. Foi colunista de cultura no jornal Focus. Escreve sem compromisso no @resenhador_, Instagram literário – ou diário irregular de leituras.

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