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o pescador e os espíritos do rio

por Calebe Guerra
solitário pescador. colagem de leopoldo cavalcante para ilustrar o episódio 15 do biyiniao do livro, de calebe guerra

Calebe Guerra é bacharel em Literatura Chinesa pela Universidade Xi’an Jiaoyong e mestre em Literatura Clássica Chinesa pela Universidade de Wuhan. Ele apresenta os podcasts BiYiNiao do Livro, com reflexões pessoais em torno de filosofia e literatura chinesa, Conto de Terror, spin-off do primeiro, de narração de histórias de terror chinesas e o Pagode Chinês, sobre notícias e curiosidades da China.


Para ouvir esta postagem, confira o episódio #15 do BiYiNiao do Livro:

O PESCADOR E O ESPÍRITO DO RIO

Conto folclórico compilado por Pu Songling (, 1640-1715) durante a Dinastia Qing. Tradução do chinês por Calebe Guerra.

PARTE 1

Havia um homem chamado Xu que morava ao norte da vila de Zi Chuan e ganhava a vida pescando. Todas as noites em que passava à beira do rio, ele trazia consigo vinho para beber enquanto pescava.

Antes de começar a beber, Xu sempre estendia o primeiro copo de vinho às águas do rio, como oferenda, e fazia um desejo:

“Espíritos afogados no rio, venham beber comigo!”; e esse era seu costume diário.

Outros pescadores geralmente pegavam poucos peixes, mas Xu pescava cestas cheias diariamente.

Uma noite, Xu estava bebendo sozinho quando avistou um jovem que caminhava em sua direção. Ao chegar mais perto, o jovem perambulou ao seu redor por vários instantes. Ele, então, convidou-o para sentar-se e tomar vinho com ele, o que o rapaz aceitou sem pensar duas vezes. Assim, os dois compartilharam o vinho.

Porém Xu tinha um semblante muito frustrado. Nessa noite nenhum peixe foi pescado. O jovem então se levantou, fez uma reverência ao seu novo amigo e lhe disse:

“Eu vou descer na água para buscar peixes pra você”.

Após ter dito isto, o jovem mergulhou no rio. Depois de um tempo, ele saiu das águas e, acenando para Xu, lhe disse:

“Está vindo um grande cardume por ali”.

Logo o pescador ouviu o murmúrio de muitos peixes comendo suas iscas. Xu jogou sua rede e pegou mais de uma dúzia de peixes grandes. Xu ficou muito feliz e muito grato ao rapaz. 

O estranho decidiu que era hora de ir embora. Xu, então, ofereceu-lhe peixes para levar. Mas o jovem os recusou:

“Bebi várias vezes com você do seu bom vinho, como você pode querer me agradecer este pequeno favor que fiz? Se você não se importar, virei vê-lo com mais frequência”.

Xu respondeu:

“Acabei de encontrar você, por uma só noite. Como você pode dizer que bebeu comigo várias vezes? Se você desejar voltar para me ajudar, eu não poderia lhe pedir mais do que me fazer companhia. Como eu retribuiria esse carinho todo?”

Então, Xu perguntou ao rapaz seu nome. Ele lhe respondeu:

“Meu sobrenome é Wang. Não tenho nome. Quando me encontrar, me chame de Wang Liu Lang”.

E após ter dito isto, se foi. 

No dia seguinte, o tal do Xu vendeu os peixes e aproveitou para comprar mais do bom vinho. Naquela noite, ao chegar à beira do rio novamente, Liu Lang já estava esperando. E os dois beberam mais uma noite felizes. Depois de alguns copos, Liu Lang desceu às águas para pegar mais peixes para seu amigo. Dia após o outro, pescando e bebendo juntos, meio ano se passou.

Uma noite, Liu Lang de repente disse a Xu:

“Você e eu nos conhecemos e nos afeiçoamos como irmãos, a ponto de dependermos um do outro como as mãos dependem dos pés. Mas é chegado a hora de nos separarmos”.

Ele disse isso com muito pesar e sofrimento. Xu ficou extremamente espantado e lhe perguntou o porquê teria de ser assim. Liu Lang pensou por uns momentos e lhe respondeu:

“Já que me afeiçoei a você como a um irmão, espero que você não se assuste com o que vou te dizer. Vou falar toda a verdade, sem esconder nada, sobre o motivo pelo qual precisaremos nos separar para sempre. Na verdade, eu sou um espírito. Enquanto vivia, por ter bebido demais, caí neste rio e me afoguei. Isto foi há muitos anos… Quando você descia aqui e pegava mais peixes que todos os outros pescadores, era porque eu te ajudava sem você saber, retribuindo o bom vinho que você despejava na água para mim. Amanhã, meu tempo por aqui chegará ao fim. Uma pessoa virá me substituir e eu poderei renascer no mundo dos vivos. Esta noite é a última noite em que nos veremos, eu e você. Por isso estou com o coração pesado”.

Xu ficou atordoado ao ouvir a história – e com muito medo. Mas, por ter convivido tanto tempo com seu amigo, ele não se apavorou e, após alguns segundos, sentiu o coração afundar em seu peito. Então, ele serviu lentamente uma taça de vinho e disse:

“Liu Lang, eu brindo este bom vinho a você! Espero que toda a tristeza desapareça depois de tomá-lo! Nunca mais nos veremos, então estamos com os corações partidos. Mas você está saindo da sua desgraça, então te parabenizo! Não fique triste! Você merece ser feliz!”

Assim, os dois continuaram a beber. Mais tarde, Xu pergunta a Liu Lang:

“Quem vai te substituir?”

Ao que Liu Lang responde:

“Amanhã ao meio dia, meu querido irmão, você pode esperar escondido na sombra daquela árvore. Nesse horário, uma mulher vai cair no rio e morrer afogada. Ela vai me substituir”.

Os dois ouviram o galo cantar na aldeia distante, derramaram muitas lágrimas e se despediram.

PARTE 2

Ao meio dia, Xu se escondeu perto  da beira do rio para observar o que aconteceria. No momento indicado, uma mulher desceu lentamente à beira do rio com um bebê nos braços e, em um momento de descuido, caiu no rio. O bebê foi jogado a tempo na areia e começou a chorar alto, mexendo seus braços pequenos e rosados. A mulher vinha à superfície da água e afundava. Assim foi, incontáveis vezes, até voltar à margem do rio e sair encharcada e ofegante. Depois de sentar-se no chão por um momento, pegou novamente o bebê no colo e saiu caminhando.

Ao ver a mulher caindo na água, Xu quase não suportou a agonia de querer salvá-la, mas lembrou-se de que ela seria a substituta de Liu Lang e desistiu de ajudá-la. Quando percebeu que a mulher não havia morrido, seu coração começou a suspeitar se tudo o que Liu Lang lhe havia dito não passava de mentiras.

Naquela noite, o tal do Xu voltou ao mesmo local para pescar, e Liu Lang já estava lá.

“Hoje, eu e você nos reencontramos. Não falaremos em despedidas por enquanto”.

Quando Xu perguntou sobre tudo o que tinha acontecido ao meio dia, Liu Lang respondeu:

“Aquela mulher era minha substituta, mas eu tive pena do bebê que ela carregava nos braços. Não tive coragem de ferir duas vidas para salvar somente uma – a minha. Decidi, então, abandonar aquela oportunidade e não sei quando vou ter outro substituto. Talvez nosso destino juntos ainda não tenha se esgotado!”

Xu suspirou e disse:

“Este seu bondoso coração vale mais do que a Jade que o imperador carrega no pescoço”.

A partir daí, os dois continuaram bebendo e pescando como antigamente.

Passaram-se alguns dias. Liu Lang então veio se despedir de Xu novamente. Xu perguntou se alguém viria para substituí-lo e ele lhe respondeu:

“Não. O Imperador de Jade ficou movido com minhas boas intenções da última vez e me chamou para ir às terras de Wuzhen, na vila de Zhao Yuan. Vou assumir meu posto amanhã. Se você não se esquecer da nossa amizade, lembre-se que eu estarei não muito longe daqui. Venha a Zhao Yuan me visitar”.

Xu lhe parabenizou e disse:

“Estou muito contente que meu irmão virtuoso se tornará um deus agora, a mando do Imperador divino. Mas a distância entre homens e deuses é imensa. Ainda que eu não tenha medo de caminhar por vários dias, como poderei encontrar você novamente?”

Liu Lang respondeu:

“Só se preocupe em caminhar. Não se preocupe com nada mais”.

Repetiu a frase várias vezes e deixou o rio. 

PARTE 3

Xu voltou para casa, e rapidamente saiu para comprar roupas de viagem. Sua mulher riu na sua cara e disse:

“Você vai caminhar por centenas de quilômetros e, mesmo que exista esse lugar, imagino que não dê pra conversar com um ídolo de barro”.

Mas Xu não lhe deu ouvidos e partiu em busca de Zhao Yuan. Após caminhar muito, perguntando por quem passava na rua, descobriu que realmente existia uma região chamada Wu Zhen. Ao chegar, entrou em uma pousada de estrada e perguntou ao dono onde ficava o templo de sacrifícios.  O proprietário respondeu:

“Por acaso Xu seria o seu sobrenome?”.

Xu respondeu que sim.

“Mas como você sabe?”, perguntou. O proprietário não respondeu e saiu correndo pela porta.

Pela janela, Xu conseguiu ver um homem com uma criança no colo se aproximando. Uma mulher vinha logo atrás; depois mais duas; e chegavam até a pousada mais algumas pessoas saindo do outro lado da estrada. Em pouco tempo, a vila inteira espiava ansiosamente do lado de fora da pousada.

Xu estava muito assustado e sem saber o que estava acontecendo. Até que todos disseram:

“Há algumas noites nós sonhamos que um deus vinha dizer: ‘Uma pessoa chamada Xu, de Zichuan, virá até aqui. Por favor, ofereçam-lhe toda ajuda necessária’”.

O tal do Xu ficou muito impressionado e foi até o templo prestar seus sacrifícios a Liu Lang. Ele disse:

“Desde que me separei de você, sonho todas as noites com tudo o que está gravado em meu coração. Por esta razão viajei de tão longe para cumprir com mais um encontro que tínhamos marcado. Você também pediu de antemão ao povo da vila que me ajudassem – por isto, estou muito grato. Me perdoe por não ter presentes para lhe oferecer. Só tenho um copo de vinho comum, de baixa qualidade. Se você não se importar,  gostaria de dividi-lo com você, como fazíamos na beira do rio”.

Xu, então, queimou um pouco de dinheiro em oferenda. Imediatamente um redemoinho de vento subiu do altar do deus, girou em volta de Xu por um longo tempo até se dissipar. 

Naquela noite, o tal do Xu sonhou que Liu Lang vinha até ele com roupas bonitas e claras, bem diferentes das do passado. Liu Lang lhe agradeceu:

“Foi difícil o caminho para vir me visitar de longe. Por isso, eu fico contente, mas com o coração doído. Eu tenho uma responsabilidade agora, a qual terei que encontrar e seguir. Não será mais possível que nos encontremos. Você está tão perto de mim, mas temos montanhas e rios que nos separam. Sinto-me desolado. O povo da vila terá um presente para lhe entregar. Será uma retribuição ao meu antigo amigo de bebidas. Quando for sua hora de partir, eu virei buscá-lo”. 

EPÍLOGO 

Xu ficou na vila por alguns dias e começou a planejar sua volta para casa. Todo o povo da vila se revezava para atendê-lo e tratá-lo com hospitalidade. Xu, então, decidiu anunciar sua partida e todos vieram lhe dar presentes para encher sua mochila com lembranças da vila. Em menos de um dia, vários sacos estavam cheios de presentes e homens, mulheres e crianças se reuniram para mandar Xu em sua jornada de volta.

Ao iniciar sua caminhada, um redemoinho se levantou ao seu lado e o seguiu por vários quilômetros. Até que Xu se curvou ao vento e disse:

“Precioso Liu Lang, não precisa mais me acompanhar. O amor e a bondade que existem em seu coração serão minhas bênçãos por várias vidas. Não é necessário que um velho amigo se preocupe com o outro”.

O vento girou alto e repetidamente até que se acalmou e sumiu. As pessoas da aldeia também voltaram para suas casas.

O tal do Xu voltou para casa, sua família enriqueceu e ele parou de pescar para sobreviver. Durante alguns anos, ele se encontrava com pessoas de Zhao Yuan e, ao perguntar como estava tudo por lá, ouvia que sua história continuava famosa e conhecida por todos. 

ANEXO1

Wang Liu Lang vive entre as nuvens sendo um deus, mas não se esquece do amigo que tinha quando era pobre. E esse é o motivo pelo qual ele é deus. Hoje, sentado em uma carruagem nobre, vai dizer que ele se esqueceu daquele seu amigo com o chapéu de palha? 

Na minha vila tem um senhor aposentado de família muito pobre. Ele tem um bom amigo de infância que hoje enriqueceu. Ele pensou que, se fosse até seu amigo em busca de ajuda, seria acolhido com generosidade. Assim, não mediu esforços: se lançou na estrada para caminhar milhares de quilômetros. Mas voltou completamente frustrado. Ele teve que vender tudo o que carregava em sua bagagem para conseguir voltar para casa. O seu amigo era muito engraçado, escreveu um poema chamado “A ordem da lua”, para ironizá-lo.

Sob lua o irmão voltou
o seu chapéu arretirou
seu coche não estacionou
seu corcel um asno virou
seu sapato então silenciou

Ao ler esse poema, dá pra dar boas risadas.


[1]: No fim da narração, o escritor traz seu entendimento pessoal: os seres espirituais são mais confiáveis que os seres humanos. O poema “A ordem da lua” descreve o que ocorre no mundo dos viventes, algo que raramente aconteceria na dimensão onde habitam os que já se foram: um amigo abandonado tendo sua dor satirizada por quem o deixou na mão. Com a rima, o autor termina a história desprezando a condição humana que se engrandece na traição. NT

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