Vermelho/Ruína e as “pedras dispersas nos escombros de dentro”, por Adriane Figueira

por Adriane Figueira
Arte: Zeppelin in flames, de Walter Hunt.

Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Publicou Revoada do dragão (Editora Patuá) em 2021, e Voragem (Editora Folheando) em 2022.


“El lenguaje silencioso engendra fuego. El silencio se propaga, el
silencio es fuego.”

(Alejandra Pizarnik)

“posso ver que o centro do fogo é intransponível.”
(Mar Becker)

Quero iniciar esse texto falando de duas poetas para chegar a uma terceira que, neste caso, é a razão central pela qual essas reflexões se erguem. Começo por Alejandra Pizarnik (1936-1972) e as mulheres que ousaram subverter a lógica masculina na poesia latino-americana do século XX. Ela, acusada de ser “pouco ou nada interessada” no cenário político argentino, especialmente dos anos 50 e 60, trouxe para os seus versos as inquietações mais profundas, uma mescla de subjetividades que agonizavam dentro de sua linguagem, do silêncio da noite que devora e forja a outra, as outras, os eus fragmentados.

No Brasil do século XXI, Mar Becker (1986-) resgata essas mulheres do fundo das águas, deslocando-as para fora das margens, quebrando a lógica raso-profundo e ampliando os espaços da poesia. A poeta gaúcha encena na força da palavra essa dança submersa, um silêncio prescrito, pré-escrito, que somente as mulheres compreendem, uma espécie de pacto engendrado pelas correntes fluídas, os líquidos que transbordam pelos corpos femininos.

Pizarnik fala “Todo hace el amor con el silencio…” e as palavras ganham novos sentidos ditos e interditos, o inefável que suspende o corpo do poema, o corpo de quem o escreve, o corpo de quem o lê e um corpo fora do corpo e também o corpo político, pois existimos localizadas e indissociadas do contexto, ainda que de modo aparentemente apartadas. Becker proclama “… uma mulher ama a outra em silêncio…” e a palavra “maldita” que encena a alteridade ressurge, emerge — mulher, signo caro, imprevisível.

Digo, dou voltas, me desprendo para ancorar nos versos de Erlândia Ribeiro (1995-), em sua obra Vermelho/Ruína (Urutau, 2021) e perceber onde essas pontas e tecidos se tocam e expandem. Espelho, fogo, labirinto. Vermelho — gerar, pulsar, sangrar. Ruína — desmanchar, dessacralizar, reconstruir. Caminhos escolhidos para trafegar pela potência poética da jovem escritora de Rondônia, estado ao Norte do Brasil e, portanto, fora da margem. Ruindo o ruído e ouvindo o silêncio, escalo.

movimento de ferida aberta…

A obra Vermelho/Ruína está dividida em fragmentos, três ao todo: fragmentos de pedras, fragmentos do desejo e fragmentos entre ser eu e ser outra. Ao dar forma ao caos pressuposto pela perda de uma espécie de “origem”, “alicerce”, os versos de Ribeiro capturam o impossível gesto de reunir os escombros que soterram a voz que tenta escapar pelas frestas empoeiradas, asfixiantes. A tentativa de toque da poeta que escala a incerteza perigosa, numa queda quase certa.

Repito, releio, remodelo e devolvo o quase — advérbio de modo e de intensidade, para pensar como Sísifo rola a pedra e como uma mulher que escreve se coloca neste e também em outro lugar da escalada, pois ao empurrar o seu verbo em chamas, rochoso que, de tanto correr água, cede, a mulher não permite que a devolvam ao chão, rompe o ciclo da submissão. A palavra é sua guerra, seu centro, o topo, um vulcão sempre em erupção.

Ela diz “abandonei o roteiro / disparando, desfazendo, desfiando…” (RIBEIRO, 2021, p. 12) e mais adiante “eu me lanço em atos / quase sempre impossíveis” (p. 13), mas para a mulher que impunha a pena, a “impossibilidade” não a limita: “sozinha desabo o mundo e rio e escrevo” (p. 20). Línguas de serpentes que desalinham o divino — no masculino —, escorrem como lavas flamejantes, magmas que esfriam e formam rochas, porém são abalos que modificam o interior da Terra, imprevisíveis.

Qual o mistério que circunda o poema? Uma pergunta impossível e sem qualquer resposta satisfatória. Mulheres reunidas em volta da fogueira. Pizarnik-Becker-Ribeiro, elas, como tantas outras, todas, ao infinito, escrevem fora do tempo, dentro de um espaço profanado, um quarto pequeno e escuro, mas que também é um universo, uni-versos. A palavra escapa, o corpo precipita diante do abismo, mas desliza suave e furioso pelas bordas, alcançando o outro lado da margem que é tripartida, encruzilhada do sonho que não opta pelo óbvio, pois: “el centro de un poema / es otro poema / el centro del centro / es la ausencia”, mas a lacuna pode ser preenchida pelo vazio, pelo silêncio, uma janela que se abre ao outro.

O sangue é o vivo, mas também a morte do (im)possível. O prazer retroalimentado pelos dedos que tocam, teclam, desenham as palavras. Um Eros feminino gozoso que brinca de esconder e revelar, sempre deflorado, em nascedouro sufocado, jogos de palavras que deflagram: “te leio por onde posso” (p. 39) e mais e de novo. Ler, reler, criar, desfazer, pois o desejo é caminho, tentação: “… o caos abre o mundo.” (p. 42).

As ondas da Mar trazem à beira o verbo que ainda não existe: “ama na minha boca a palavra que nunca é dita”. O eu, a outra, o fragmento. Erlândia sequestra a palavra e escancara os dentes. Ela — guiada pela chama vermelha que arde, pelos passos marcados no chão e desfeitos pelo vento, pelo silêncio que mancha cadernos, mulher viva, em fúria, despida de suas vestes metálicas, o sangue jorra em fluxo violento, o rio encarnado corre em redemoinho: mergulho, afogo, cuspo líquidos e revivo, revido, reconstruo. Eus que se confundem e se misturam.

A vida infiltrada nas fissuras do edifício abandonado, flores nascem das paredes com mofo, do concreto rachado, pois há um alicerce que não desaparece, se recusa a deixar ir, quer ficar e ser. Ela pinta os lábios e as unhas de rojo, aperta entre os dedos o caule de uma rosa, mas a dor não atinge o seu corpo, o sangue corre “todo vermelho vivo / dentro” (p. 59). Fora, centro.


Arte: Zeppelin in flames, de Walter Hunt.

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