a face de Cristo

por Leopoldo Cavalcante
a face de cristo leopoldo cavalcante

I.Introitus

Qui suis-je?

André Breton

Quem é Deus? Na ótica teísta predominante na cosmovisão da maior parte da população que passou pela Terra, esta pergunta blasfema contra a ordem inicial das coisas. Deus só é: tanto em solidão quanto em essência. O que vale perguntar é tão somente: pelo que se apresenta Deus? Como a pergunta tende a infinitas respostas, prender-nos-emos ao cristianismo, religião predominante às análises aqui feitas.

Aos fiéis letrados, Deus se mostra pelas Escrituras. Aos melomanos de todas as épocas, o intangível dos sons perpassava o Senhor por cada um de nós. Aos analfabetos, está Deus nas pinturas de parede, nos quadros, nos dípticos e trípticos. Deus, pelo que ouviram, se expressa pelas Escrituras, terreno inacessível a eles, mas não aos artistas, convocados pelo clero para luzir os Textos.

No século VI, o Papa Gregório, o Grande, declarou: “Uma coisa é adorar um quadro, outra é aprender em profundidade, por meio dos quadros, uma história venerável. Pois aquilo que a escrita torna presente para o leitor, as pinturas tornam presentes para os iletrados, para aqueles que só percebem visualmente, porque nas imagens os ignorantes veem história que devem seguir, e aqueles que não conhecem o alfabeto descobrem que podem, de certa maneira, ler. Portanto, especialmente para o povo comum, as pinturas são o equivalente da leitura”.

No tríptico de Jan van Dornicke, sem data e parte do acervo do MASP desde 2004, chamado Cristo carregando a cruz, a crucificação e o sepultamento vemos a Paixão, momentos antes, durante e após a crucificação de Cristo.

Retratar o sofrimento de Cristo na cruz foi lugar comum na arte, encarregada quase majoritariamente de levar os fiéis ao êxtase imagético, ao aprendizado, sendo este o prelúdio do transcendental. No claustro da Igreja, perscrutava-se diretamente para o que estava escrito. À Igreja não se podia dar o capricho de Flaubert, que era invariavelmente contra ilustrações de suas histórias. A palavra é sagrada, remete a algo quase amorfo, precisamente impreciso. Ilustrar seria viciar o olhar. Mas o vício dos outros é pecado, o da Igreja, apoteose.

Deus fez-se homem e principalmente símbolo. A linguagem, como explorada pelos semióticos, é antes de tudo símbolo. Um conjunto deles forma uma gramática que, quando vista pelo leitor – na sua acepção mais abrangente -, é decifrada, decodificada. Os leitores e as gramáticas, todavia, são a ração diária favorita do tempo, que a tudo devora.

Portanto, apreender todos os significados de uma obra de arte antiga requer um brutal esforço de reconstrução semântica por parte dos historiadores. Como esse trabalho não se propõe a análises tecnicamente aprofundadas, seguiremos às descrições pitadas de reconhecíveis atributos históricos. Mutatis mutandis (perdão pelo latim), o que se souber da hermética gramática, aplicar-se-á à obra.

II. Agnus Dei

A dream itself is but a shadow

Príncipe Hamlet

Na parte esquerda, vemos Maria, mãe de Jesus, com um vestido verde musgo e a túnica da Imaculada, na frente de duas outras mulheres, sendo uma com certeza Maria Madalena e a outra podendo ser tanto Santa Maria Salomé quanto Maria de Cleófas. Atrás delas, há um nobre de chapéu sobre um cavalo pequeno, tampando com sua crina a pança de um homem sem barba e com queixo duplo. Próximo a esse homem, um outro parece tocar um trompete encimado por uma flâmula vermelha e branca. Na margem esquerda, um soldado ricamente adornado, vestindo saia dourada e calça listrada de azul e vermelho, com cassetetes, empurram um Cristo encurvado, encurralado, com sua coroa de espinhos e carregando a cruz, vestindo um pobre manto verde azulado, com um rosto aflito e sem a tradicional longa barba. Sua feição é inchada, desproporcional, de olhos fechados mirando a arma do soldado. Em resumo, um homem feio e deformado, cujas faces estão – ou estarão – impressas eternamente no véu carregado pela moça coroada e com manto vermelho, Santa Verônica.

Na parte central do tríptico, Cristo está esquálido, pregado à cruz. Sob seu peito, a Lança do Destino, portada por um Longinus barbudo, trajando uma capa vermelha, derrama o sangue do Filho de Deus. À direita de Jesus, preso pelas mãos e pés, vestindo uma proteção genital e na perna, ambas douradas, sobre justas ceroulas vermelhas, o ladrão (ou rebelde) olha para Cristo – ou para o Céu? – como quem pede clemência. À sua esquerda, o outro ladrão com vestes vermelhas cobrindo os ombros, metade dos braços e os peitos, sobre o robe branco que cobre o resto do corpo, mira o chão ou o corpo morto de Jesus, presente na terceira parte do tríptico.

Ainda na pintura central do tríptico, no canto esquerdo, a Imaculada está desfalecida, nos braços de uma mulher com cabelos soltos e um robe vermelho cobrindo seu corpo e de outra, com vestes verde e um laço branco na cabeça. Entre as Marias principais, duas mulheres permanecem do seu lado. A narrativa bíblica conta de Jesus se dirigindo às Filhas de Jerusalém, designação genérica às mulheres presentes ao pé da cruz. Dois ou três homens parecem fazer parte da “multidão” que acompanhou a crucificação. Eles estão vestidos de roupas vermelhas claras. Entre eles, um dos homens porta uma barba marrom e um turbante branco, olhando para um ponto indefinido, quiçá ao espectador da obra. O outro não tem barba e observa a lança perfurar por entre as costelas de Jesus. Há ainda outros quatro personagens de armadura verde, possivelmente centuriões, como o armado na pintura à esquerda e o Longinus, portador da lança. Dois cavalos, um branco e outro negro, parecem trotar fortemente protegidos por uma armadura de ouro, cobrindo a cabeça, e uma couraça vermelha, detalhada em dourado.

Na última pintura do tríptico, vemos Cristo morto, os lábios azulados, os olhos enrugados e enegrecidos, a mão e o pé perfurados. Carregado por dois homens, um de capa dourada, os braços mostrando um robe verde, a barba comprida, o turbante adornado por um medalhão que parece se repetir no pescoço, um nariz esguio, e o outro com vestes de um vermelho rico, uma sacola de dinheiro pendendo da cintura, o rosto mostrando esforço e desproporcional ao de Cristo e um chapéu verde musgo. Pela tradição bíblica, eles se chamam São José de Arimateia e São Nicodemos, os santos que sepultaram Cristo.

Ao lado do Filho de Deus, quatro mulheres parecem querer tecer lágrimas. À esquerda de Jesus, uma mulher de túnica verde e robe interior branco está à frente daquela já conhecida mulher de cabelos soltos e robe vermelho, acompanhada de outra totalmente por trás de Cristo, deixando à mostra apenas a túnica branca. Beijando a mão de cristo, uma moça que não havia ainda aparecido traja um vestido vermelho e uma tiara dourada. Cobrem-lhe os pés e a cintura um tecido branco que se arrasta pelo chão. Ao fundo do quadro, quase imperceptível, dois centuriões parecem observar a cena, de longe, próximos de uma torre.

III. Lux aeterna

“A devassidão que eu conheço não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo estrelado”

História do Olho, Georges Bataille

Umberto Eco (1932 – 2016), retoma as ideias de beleza e, o que nos interessa, de feiura no decorrer dos séculos. Cristo, filho de Deus, que se fez carne, matéria-prima do homem, é o píncaro da beleza espiritual, mas não física. O sofrimento desfigurava-o, como menciona Isaías. Hegel diz que “não se pode representar o Cristo flagelado […] nas formas da beleza grega.” Todavia, como bem lembra Santo Agostinho: “Se você vê a si mesmo com defeitos (da alma, em relação ao Livro Sagrado), vai desgostar de si mesmo e já estará no caminho da beleza. Mostrando as suas falhas, vai aprender a se tornar belo”. Uma possível interpretação desta passagem nos remete a outra ideia de Agostinho, um giro epistêmico que subverte o externo em prol da suprema beleza interior, abrindo margens a representações de um Jesus bonito, apesar dos pesares, idealização comum nos tempos antigos e modernos, principalmente na imagética popularesca do Filho de Deus.

Fora do episódio da paixão, a beleza de Cristo é moldada de acordo ao mundo europeu. O homem medieval herdou um referencial de beleza que pouco se diferencia tanto dos gregos quanto dos posts de Facebook. Um homem belo, como se percebe, deve ser simétrico, corado, alto e forte, possuir, se possível, traços delicados, mas não andróginos, e, quase sempre, ser branco. Muito da idealizada beleza de Cristo é “culpa” da Bíblia: não há menção sobre a aparência física de Jesus. Até onde se sabe, ele poderia ter cabelo curto, barba e rosto escuro.

A feiura física foi – e é? – condenável. Um brocardo utilizado pelos antropólogos e criminologistas do século XIX, lembrado por Nietzsche para falar de Sócrates, dizia: monstrum in fronte, monstrum in animo (monstro de aspecto, monstro de alma). Continua Nietzsche, que, certa vez, um estrangeiro entendido de rostos chamou a Sócrates de monstro. Irônico, o ateniense respondeu: “me conheces, meu senhor!” Sócrates possui o deboche, luxo ao qual Cristo jamais poderia se dar.

O elo corpo-espírito tem uma importância fundamental no mundo antigo. Conceber um Cristo humano, pálido, infantilizado sem sua barba, deformado, poderia refletir não só no ânimo, mas na essência divina de Jesus. A escolha de Jan van Dornicke segue uma lógica da pintura erudita do começo do século XVI. Cristo, homem, sofredor, fraco, abandonado, é figurado no seu momento de maior abandono pelo Pai. A imagem recorrente da crucificação é o rosto ensanguentado, filetes de sangue descendo da coroa de espinhos e ensopando as vestes brancas, que cobrem apenas sua nudez. Van Dornicke soube que o flagelo não podia ter a beleza dos heróis gregos nem o traço fino do renascimento italiano, mas estava consciente da expressividade e da importância dos personagens secundários à iconografia cristã.

Tudo que se lê na pintura do mestre holandês possui a incógnita do vocabulário perdido. Entre as vertentes do maneirismo, o da Antuérpia parece ser o menos explorado, mais amorfo e menos definido dessa forma de pintar que renega a grandeza dos renascentistas. Não obstante, é nessa negação, na imperfectibilidade da forma, no Cristo destruído, flagelado, fragilizado e morto que vemos o Pai, como diria o poeta católico português Daniel Faria, pintado numa cor silêncio noturno.


Leopoldo Cavalcante nasceu em Fortaleza, Ceará. É editor da revista Aboio. Foi colunista de cultura no jornal Focus. Escreve sem compromisso no @resenhador_, Instagram literário – ou diário irregular de leituras.

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