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Aquela noite

por Luiza Leite Ferreira
Desenho de Ariyoshi Kondo de um lírio alaranjado para ilustrar os poemas de Luiza Leite Ferreira

Luiza Leite Ferreira é autora dos livros de poesia É na cacofonia que eu me escuto (Caravana, 2022) e Amor Recreativo (Patuá, 2023). Jornalista e mestranda em Estudos de Literatura pela UFF, atua como tradutora e revisora, integra o Coletivo Escreviventes e o portal Fazia Poesia.


Aquela noite

Ainda penso naquela noite
quando éramos apenas colegas
como o mito fundador da nossa amizade
Naquela noite em que
pulamos de bar em bar
e a cada copo virado
eu me vertia em confissões
e você se divertia
com as minhas confusões
até que eu contei sobre aquela vez
naquela noite
e você não riu
e eu chorei
e ficamos sérios
e nos abraçamos na despedida
e para a minha surpresa
continuamos saindo
e bebendo
e rindo

Mas quando passamos a ser
mais que amigos
e você não quis
ser mais do que isso
me peguei pensando
se você ainda pensa
no que eu te contei chorando
sobre aquela vez
naquela noite
e se é por isso
que você me olha
— com amor, sim, mas —
com tanta pena
que não admite
ser mais que amigo
de alguém
que atrai tanto
problema


Onde pôr as mãos

Se eu fumasse
talvez soubesse
o que fazer
com as mãos
e para onde olhar

Me reclinaria
na cadeira
torceria o corpo para o lado
para alcançar o
maço na bolsa
sem pressa

Equilibraria
um cigarro entre
dois dedos
e o isqueiro
na outra mão
levaria o cigarro
aos lábios
e com a mão livre
faria uma concha
e com a outra
dispararia o isqueiro
talvez uma, duas vezes
antes de ver a chama

Tragaria o tabaco
depois equilibraria o cigarro novamente
entre dois dedos
guardaria os apetrechos com destreza
e com o braço livre cruzado sob o peito
e o do cigarro apoiado nele em noventa graus
cruzaria também as pernas e viraria o rosto de lado
soprando uma longa fumaça pelos lábios
olhando a rua
olhando as conversas
de vez em quando levando o cigarro aos lábios
protegida pela minha bolha de fumaça e alheamento
como personagem de romance

Mas eu não fumo
detesto cigarro
travei guerra ao cigarro aos 12 anos
joguei fora um maço novinho no lixinho da pia
meu pai ficou irado
até hoje me agradece

Salvar meu pai do cigarro
e de pulmões intoxicados
é, sem dúvida, um dos meus grandes feitos
por isso não posso fumar
não posso ocupar minhas mãos com cigarros e isqueiros
e vagar meu olhar pelas ruas, pelas mesas
como uma moça francesa

Por isso escolho a caneta
e o papel que estiver à mão:
guardanapo, caderno, cardápio
ou mesmo minha própria mão
e quando não sei para onde olhar
ou onde pôr as mãos
me ponho a escrever o que vejo

Mas nem sempre tenho caneta
nem sempre tenho papel
às vezes só tenho a mim mesma
e isso deveria bastar
como me basta quase sempre
deveria bastar
mas não
talvez se eu fumasse eu ainda
não me bastasse
mas parecesse
e para esses momentos
bastaria
acho


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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