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Quem ousa entender Kafka?

por Leopoldo Cavalcante
Face-of-Another-144

I.

Há algumas semanas, eu participo de um grupo de estudos cuja bibliografia foi montada por mim mesmo. O objetivo é entender a origem de ideias das mais variadas e averiguar as suas funções na atuação política, no campo do real. Parte da bibliografia é bem objetiva, traz acadêmicos explicando Popper, Bourdieu, Foucault, formação cognitiva do nosso cérebro etc. Enfim, temas em que há um respaldo mínimo em um pensamento estruturado por autores, independente de se gostar ou não deles. Mas tem algumas recomendações que saem do campo filosófico e vão para o campo da literatura. E são nessas que reside o “problema”.

Um amigo, em certo momento das discussões, perguntou por que coloquei um conto de Kafka na bibliografia. Como sou péssimo em organização, não lembrava de o motivo desse conto estar presente. Pedi para ele ler em voz alta todo a história (é só uma página. Não sou um monstro). Enquanto ele lia, eu anotava detalhes. Quanto mais eu anotava, menos eu entendia minha escolha.

Ao menos cinco interpretações completamente diferentes borbulhavam na minha cabeça. Nenhuma era objetiva o suficiente para o grupo. Admiti na hora, e reitero, que eu não estava entendendo nada. Mesmo assim, enrolei por uns vinte minutos algumas possibilidades, tergiversando temas complexos demais e tendo uma segurança apenas retórica na exposição. O encontro durava uma hora. Metade foi tentando entender a minha bibliografia. Grande professor, eu.

O conto era Diante da lei. Em uma página, Kafka parecia rir da minha pretensão docente. Antes de continuar aqui, recomendo tirar três minutos para lê-lo.

Se fosse explicar de uma maneira a focar no termo “homem do campo”, poderia esboçar uma relação de subordinação entre o fraco e o forte (o porteiro, no caso). Mas não há força física impedindo o homem de entrar. Por outro lado, numa visão teológica, o porteiro poderia ser uma negação de Deus, que estaria dentro da porta. Mas a porta era só para aquele homem, e nenhum outro. Como Deus seria subjetivo e pessoal? Se o homem à porta fosse uma representação de todos os homens frente à lei e a inacessibilidade ao sistema, teríamos um problema similar à visão teológica: o sistema não é pessoal. E, nesse caso, a burocracia kafkiana seria meramente ocidental; quiçá germânica.

Um insight no meio da discussão me lembrou, mais ou menos, por que eu tinha pego esse conto, de todos os outros do Kafka, para elucidar a proposta do grupo: a ideia de que há outros porteiros, supostamente mais fortes, a cada porta, segurava o homem do campo na primeira porta. Para chegar à verdade, eu tinha pensado, seria preciso quebrar as barreiras da insegurança das crenças da autoridade. Mas mesmo essa explicação foi uma parada retórica que poderia ser desconstruída por detalhes do texto.

Como pode, em uma página, um cara criar um mundo apreciável pela estética, mas inacessível pela razão?

II.

Antes de morrer, Kafka tinha pedido ao seu amigo Max Brod para queimar todos os seus textos. Para nossa sorte, Max ignorou o pedido e publicou alguns inéditos. Outros permanecem guardados e em disputa judicial pela sua posse; no melhor estilo kafkiano: presos na burocracia.

A obra de Kafka foi tida na Europa como profética. Um escritor escancarando o absurdo da burocracia anos antes da ascensão do ápice do Estado lógico-racional e impessoal. À época, os europeus o associavam, principalmente, ao nazismo. Hoje, seguramente daria para estender para todos os sistemas burocráticos, cada vez mais labirínticos, confusos e distantes do povo.

Seguindo um gosto romântico por messias e profetas, reverencia-se Kafka até hoje. Dele, criou-se a imagem de um homem inseguro, mas com a imaginação fértil o suficiente para prever o caos no nosso futuro. Um Davi frente ao Golias do sistema. Um burocrata frustrado que escrevia de madrugada por não ter horário livre durante o dia. Na madrugada, bolava enigmas em formato de histórias para denunciar o poder. Talvez seja isso. Duvido muito.

Alguns amigos próximos de Kafka contavam que ele lia suas histórias absurdas em rodinhas e ria muito. No que intelectuais sisudos viam o fim do mundo, Kafka ria. Será que suas criações não eram para ser levado a sério? Que profeta gargalha da própria profecia? Só sei que na minha tentativa de ser um intelectual sisudo, escutei-o rindo de mim.

III.

Kafka não era um palhaço. Em todos os seus textos vemos um homem exaurido da existência. Não à toa, podemos traçar os romances principais do Kafka na seguinte estrutura: algo inesperado acontece a um homem que já tinha uma vida ruim; esse homem, frente às adversidades, luta para superar a condição em que se encontra; ele não tem êxito; ele desiste. Em outras palavras, algo de ruim acontece a um homem infeliz que morre, várias vezes, como uma besta. Vou exemplificar com O Processo.

“Alguém deve ter caluniado Josef K., porque, sem ter feito nada de errado, ele é apreendido em uma manhã” [1]. Dois policiais entram na casa de Josef K., intimam-no e dizem que ele está sendo preso. Incrédulo, Josef K. acha que é uma brincadeira de mau gosto. Todavia, os policias não cedem e ele se revolta. Quer saber qual o motivo da sua prisão. Os policias dizem não saber. Partindo daí, Josef K. dá inicio à sua busca por respostas, indo em todos os órgãos legais possíveis. Disso, ou ninguém lhe atende, ou os juízes e burocratas não lhe dão qualquer resposta concreta. Tudo é etéreo e ambíguo.

Esse imbróglio dura um bom tempo. Vamos sabendo das dores amorosas de Josef K. – uma questão extremamente secundária em Kafka são os relacionamentos íntimos –, da sua vida no conjunto habitacional, de dificuldades pontuais etc. Em resumo, um homem infeliz.

“Na véspera de seu trigésimo primeiro aniversário […], chegaram dois cavalheiros no apartamento de K.” Assim começa o último capitulo. Eles estavam lá para cumprir a pena de morte imposta a K. Lembrem-se, durante todo o romance não nos é explicado qual a dívida judicial de K. Nesse ponto da história, ele está resignado. Segue aos cavalheiros sem nenhum contratempo. Vai com eles até um campo aberto para seu momento final de onde vê um homem pela janela de um apartamento. “Quem era ele? Um amigo? Um bom homem? Um dos participantes? Um dos que queriam ajudar? Era ele um indivíduo? Seriam ele todos? Seria ajuda?” Dessas perguntas, não há respostas. E o narrador continua as inquietações de K.: “Onde estava o juiz que ele nunca viu? Onde era a suprema corte para qual ele nunca foi? Ele levantou as mãos e abriu os dedos.”

Todas as perguntas e inquietações de K. terminam no que é, provavelmente, um dos finais mais sucintos e densos da literatura:

“Mas na garganta de K. pousavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto o outro enfiava a faca em seu coração e girava duas vezes. Com olhos pesados, K. ainda viu, bem próximo de sua face, os rostos colados dos senhores, observando o cumprimento da sentença. ‘Como um cão!’, disse ele. Era como se a vergonha devesse sobreviver-lhe.”

K. é acusado por nada, luta pela vida, e morre como um cão, sob o olhar curioso dos senhores, talvez tão confusos quanto o próprio réu. A que serviu sua morte?

IV.

A história cultural do sacrifício parece ser um diferenciador da experiência humana. Na Ilíada, para atravessar os mares, Agamêmnon irritou a deusa Artêmis dizendo que ele era um melhor caçador do que ela. Em resposta, os ventos do porto de Áulis pararam e as tropas do rei não conseguiriam ir até Troia, “ressequestrar” Helena. Agamêmnon sacrifica a filha Ifigênia em um altar para Artêmis. O sacrifício da filha enfurece Clitemnestra e ela mata-o. Mas isso é outra história.

Nos livros sagrados, a ideia do sacrifício é recorrente. Desde o Antigo Testamento e na tradição judaica, o Messias será sacrificado. Há diversas passagens sobre o futuro sacrifício do Escolhido. Nesse sentido, o Novo Testamento tem uma forte verve auto referencial, retomando diretamente a ideia de que Jesus será sacrificado por ser o Messias. Na cruz, cumpre-se a profecia – ao menos na visão cristã.

Não bastando o Novo e o Antigo Testamento, em Revelações, conhecido também por Apocalipse, há a figura que a teologia política chama de katechon. Ela seria uma força poderosa o suficiente para frear a invasão do Diabo. Com a presença dela, a onda destrutiva do Dragão pararia. Mas – sempre tem um mas – cabe ao povo matar o katechon. Pelo seu poder, a chegada do Salvador seria retardada e a salvação integral não se cumpriria. Não só é preciso sacrificar o katechon como também uma parcela considerável da população – que já estava morrendo aos rios de sangue desde o começo do livro.

Na etimologia da palavra “fármaco” temos uma cisão muito explorada pelos estudiosos. Pharmakos (em grego, φαρμακός) era um ritual de purificação baseado em sacrifício. Expulsava-se uma pessoa (“um pobre diabo”, em Eurípedes) para limpar uma cidade. Pelo bode expiatório, expugna-se os males. O fármaco – ou o sacrifício – teria, em si, a cura e a doença.

Essa duplicidade de cura e doença aparece também em algumas tribos indígenas. Entre os índios Wauja do Alto Xingu há os festivais em culto aos Apapaatai. Para a tribo, os apapaatai são espíritos raptores de almas humanas e a principal causa das doenças que assolam os membros da tribo. Todavia, para curar os males da tribo, os Wauja fazem máscaras comemorativas aos espíritos. Junto às máscaras, os índios oferecem comida e bebidas. Na mitologia deles, quando os apapaatai são bem tratados eles deixam de ser “maus” e viram cura.

Nossa ciência moderna tem esse equivalente não só nos remédios – que, em altas doses, podem ser fatais – mas também nas vacinas. O corpo, em contato com a doença enfraquecida pela manipulação biológica, cria a cura para o mal injetado artificialmente.

E o que isso tem a ver com Kafka? Se minhas pesquisas etimológicas estiverem certas, bastante.

V.

Reli A Metamorfose esses dias. A história é clássica e conhecida, mesmo que por cima, por todos. “Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso”. [2]

À Metamorfose segue a lógica do ponto III. Gregor Samsa é um caixeiro-viajante que está mal de vendas, tem que sustentar o pai, a mãe e a irmã sozinho, trabalha feito um condenado, não é feliz e ainda vira um inseto monstruoso. Ele tenta dizer que vai trabalhar, que está tudo bem, mas perde a voz e só consegue grasnir. Gregor luta e luta para superar sua condição, mas não consegue. No final, morre. Só que, ao morrer, a vida da sua família, que era lamentável, melhora. Perdendo quem supria – e mal – a casa, o pai, que estava ocioso há cinco anos, vai trabalhar, a mãe arranja o que fazer e terminamos com a filha indo atrás de marido. Ao ser metamorfoseado em inseto, Gregor virou o bode expiatório dos males da família. Ou essa seria uma leitura possível.

Só que Kafka era irônico. Por limites da língua, a ironia do começo do livro não chega a nós, brasileiros e lusófonos. Em alemão, a palavra usada na primeira frase não é bem “inseto”, mas sim “Ungeziefer”. Se abrirmos um dicionário de alemão, “inseto” não é nem de perto a primeira escolha para traduzir “Ungeziefer”. Simplesmente por que a palavra não tem equivalente em português.

Ungeziefer seriam todos os pequenos animais indesejáveis. Muitas vezes a palavra é usada como sinônimo de verme ou de animais que trazem doenças e deixam os homens enfraquecidos. Na linguagem popular, também designa animais inofensivos, mas que causam angustia ou nojo. Daí a escolha por “inseto” ou “barata” é comum. Mas se fosse só isso não teria graça.

O antônimo de Ungeziefer é Geziefer. Esse segundo é mais raro e aparece em textos bíblicos e antigos. Seu significado é: animais propensos ao sacrifício – exemplos seriam ovelhas, cabras e bodes. Ungeziefer seria, portanto, os animais que não são dignos de serem sacrificados. Eu não consigo ler A Metamorfose senão como uma trágica brincadeira de Kafka. A salvação da família Samsa vem de um verme asqueroso, que todos têm nojo, mas que era o filho provedor. Aquele que tudo dava tornou-se o mais impuro – no sentido bíblico –, e trouxe a redenção. Se isso não é subverter toda a tradição humana, não sei o que é.

VI.

Não prestar atenção em uma palavra, pode desviar toda a interpretação de um texto para algum lado, e, consequentemente, torná-la absoluta. As melhores histórias têm detalhes que fazem impossível “fechar uma interpretação certa”. Talvez todo o ponto V seja uma divagação minha, sem respaldo na mente do autor. Para quem trabalha analisando literatura, aprende-se que estar errado é um pressuposto. E quando se trata de Kafka, estar errado é uma delícia.

Jorge Luis Borges tem um ensaio chamado “Kafka e seus precursores”. Mesmo frente a toda a erudição de Borges, Kafka lhe parecia, no começo, tão singular quanto “a fênix de louvores retóricos”. Em uma empreitada nada menos que borgeana, o autor vai buscar Kafka no passado da literatura e registra alguns achados em ordem cronológica.

“O primeiro é o paradoxo de Zenon contra o movimento. Um móvel que está em A (declara Aristóteles) não poderá alcançar o ponto B, porque antes deverá percorrer a metade do caminho entre os dois, e antes a metade da metade, e antes, a metade da metade, e assim até o infinito; a forma desse ilustre problema é, exatamente, a de O Castelo, e o móvel e a flecha e Aquiles são os primeiros personagens kafkianos da literatura” [3].

Borges continua mostrando outras histórias anteriores a Kafka que já apresentam traços kafkianos. Mas realça um fato fundamental:

“Em cada um desses textos esta a idiossincrasia de Kafka, em maior ou menor grau, mas se Kafka não os tivesse escrito não a perceberíamos; vale dizer, não existiria.” Borges finaliza expondo que “cada escritor cria seus próprios percussores”. Invertendo a ordem da história, na qual o passado modifica o presente, Borges vaticina: “Seu trabalho modifica nossa concepção de passado, como há de modificar o futuro”.

Como seria nosso passado, portanto, se Kafka não tivesse existido?O escritor judeu norte-americano Philip Roth imaginou exatamente isso. Mais ou menos.

VII.

Agora vem a parte Wikipedia: Franz Kafka nasceu em três de julho de 1883 em Praga numa família judia. Depois de estudar direito, que ele terminou em 1906, Kafka ingressou em 1908 numa firma de advogados especializados em seguros trabalhistas de acidente, na qual permaneceu até 1922. No final do verão de 1917, Kafka teve uma hemorragia; essa foi a causa de sua tuberculose. Em três de junho de 1924, sem nem ter completado 41 anos, ele morreu.

Já devo ter falado isso, mas antes de morrer, Franz Kafka pediu ao seu amigo Max Brod que queimasse todos os seus escritos. Também devo ter dito que ele não obedeceu.

Philip Roth pega esse gancho para imaginar outros cenários. E se a tuberculose não tivesse levado Kafka? E se ele tivesse sobrevivido até, digamos, o nazismo? E se ele fosse posto em trem para Auschwitz e fosse queimado junto com seus textos – se é que ele já não os teria queimado por si mesmo? E se, por outra hipótese, ele tivesse seguido outros judeus e tivesse fugido para os Estados Unidos? E se lá ele desse aulas de hebraico em Nova Jersey? E se Philip Roth fosse seu aluninho? E se ele fosse um aluninho que deu sorte numa prova, tirou nota boa e teve que aguentar o vexame de convidar o professor meio ranzinza e calado para jantar com sua família? E se na família de Roth tivesse uma tia solteirona que tentassem juntar com Kafka? E se Kafka tivesse aceito a tia e eles tivessem um relacionamento? E se o professor de hebraico tivesse morrido com sua nova esposa na tranquilidade de sua casinha em Nova Jersey sem nunca ter nenhuma história publicada, morto no anonimato, cujo único mérito foi ter, por acaso, dado aula a um grande escritor (isso quem adiciona sou eu)? [4]

“Kafkiano” não existiria no nosso dicionário; Gabriel Garcia Márquez demoraria um pouquinho mais para chegar no realismo mágico; Borges não teria uma base real para tentar desvendar o passado usando o presente; a história cultural do século XX talvez tivesse sido diferente; e eu não teria tido dificuldade para explicar minhas escolhas bibliográficas.

Se a obra de Kafka nunca tivesse sido publicada, Kafka, como o conhecemos, nunca teria existido.

VIII.

Às vezes, no silêncio da noite, me pergunto quantos Kafkas perdemos por acaso. Quanto o sacrifício esquecido de bestas que se viam como impuras não teria mudado o presente?

No final do dia, enfim, quem ousa entender o esquecimento? Ou, melhor, quem ousa entender a memória de Kafka?

Referências:

[1] Traduções minhas. O texto original vem numa edição vermelha da Fischer Taschenbuch de Der Proceß que encontrei por acaso na minha estante.

[2] Tradução de Petê Rissati. Disponível pela novíssima editora Antofágica.

[3] Tradução minha. Ensaio presente em Otras Inquisiones. E nesse link.

[4] Usei fragmentos da tradução de Jorio Dauster, publicados na revista Serrote em novembro de 2018.


Leopoldo Cavalcante nasceu em Fortaleza, Ceará. É editor da revista Aboio. Foi colunista de cultura no jornal Focus. Escreve sem compromisso no @resenhador_, Instagram literário – ou diário irregular de leituras.

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