Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, está de volta no coração dos emocionados e a um passo de um título relevante.
Nunca joguem lixo na rua. Se Mailé verbalizasse aquilo que todo mundo sabia, talvez a reação tivesse sido atenuada, como se, ao dizer as coisas injustificáveis, ficassem menos pudicas e mais diretas ao Paulinho.
Não tem aviso, só a vista ao longe, a mangueira seca que nem a boca, o cachorro meio ensaboado e Paulinho vendo um grupo de homens acelerando um carro. Com abril avançado na Páscoa, Paulinho se segurava em uma ideia vaga de procissão. Porém, conforme o pneu retumbava no asfalto, ele ia divisando um rosto de outro, o Roberto, o Albonzio, o Filinto e o Tone Mailé. Paulinho apertava os olhos, ainda tentando afirmar um sentido de viver. Era isso, apenas um susto dos caras. Seria assim passar acelerando, como se fosse brincadeira.
Com o Mailé se brinca, mas não muito. Imagina só, ex-corporação, muito risonho e lisinho, sem um pelo no corpo. Mailé, abreviação de maileftiból, associação sem origem, baseada espontaneamente no semblante. Talvez fosse pelo rosto azulado com a nostalgia de um bigode, a careca navalha de um coco pontudo, a estrela falsa de xerife para impor respeito, ou pela pistola blindada pelo ritual do Diabo Velho, segredo místico em que todas as balas já foram disparadas, Tone era e não era engraçado, a autoridade cômica, mas autoridade. Mailé, sorriso mole, gatilho solto.
A implicância do ex-policial com Paulinho era aquela que a gente sabe, mas ignora: eae seu nóia, conta da mercearia pendurada no nome dele, dinheiro mensal pelas rondas do bairro, coisas da ordem do dia. Fora a provocação besta com Paulinho, a dívida não era menos vívida com outros, todo mundo sempre tinha um favor à prestação com Tone.
Tinha gente que devia sorrindo, entretanto. O Albonzio e o Filinto, gêmeos donos da mercearia, senhores mais velhos, achavam engraçado o contexto, como se chamar Tone de Mailé e contar umas mentiras vez ou outra compensasse o preço da contribuição para a segurança mensal: amigos, sobretudo. Mailé ouvia os dois e suas histórias sobre meninas presas e suas namoradas, sobre garotinhos e tesouras, passarinhos, xavecos e um monte de besteira, falavam para o bairro e encontravam na assentida de Tone, a certeza de um ouvido mouco, mas depositário de ideias, regras de bom convívio para que os velhos pudessem dormir em paz. E fofocarem.
O Roberto não gostava muito de dever, mas devia mesmo assim, porque já não era garoto e, estrangeiro, aceitava as coisas do jeito de Mailé. Não gostava muito, porque de onde ele vinha as coisas não tinham hierarquia e era difícil que fixasse na cabeça a ideia de autoridade. Se ele não respeitava diretamente a proeminência de Tone, a relação deles ocorria em outro plano, Roberto gostava de matar gente e se avizinhava ao redor de Tone, que lhe concedia a autorização para mandar um e outro dessa para uma melhor e até pagava o valor das balas e gasolina se fosse caso de morte encomendada.
Em relação aos outros moradores que oscilavam entre medo e proximidade, Paulinho era diferente. Não que fosse muito valente, ou não tivesse noção da ordem do dia, mas ele estava no bairro a esmo. Cinco dias na semana como professor de artes do ensino fundamental, recém formado e mudado, futebol no sábado de manhã, videogame e um romancezinho à tarde, domingo banho no Aquiles e fique em paz. Só era provocado de leve quando ia ao mercado, porque o tipo enganava a idade, mais magro e com os cílios maiores que o documento. Quando falava qualquer besteirinha, era como se Mailé estivesse mexendo com o filho de 16 anos de alguma senhora e não com um mestrando em Ponto de Vista Estético na Universidade de Madrid. Acostumado com o contexto, vez ou outra Paulinho passava a noite em claro, mas permanecia positivo, quem sabe não ganhasse um aumento, uma promoção, ou ainda, passasse em um concurso para dar aula fora do Brasil.
Na cabeça de Mailé as coisas eram complexas no entendimento, o Paulo ouvia as brincadeiras, pagava a cota da segurança e, mesmo assim, permanecia ali: dava banho no cachorro e tossia seco quando fumava aquele cigarro.
Tone fazia as rondas diurnas pelo bairro aos domingos e via Paulinho atrás do portão gradeado. Aquiles ria, Paulinho ria, jogava bola, acendia um, ouvia Djavan. Tone pensava na constituição e como a justiça era ineficiente em prender e soltar, mas certas concessões são necessárias para a manutenção da boa vizinhança. Se tinha um comichão na mão era por costume, vontade de fazer o direito, apesar de manter o semblante de amigão da galera. Ligava o rádio do carro e justificava que tudo o que é proibido deve ser mais gostoso. Da distância de um quarteirão, o filete de água escorrendo no meio fio e uma voz de muito querer denunciavam, mas Paulinho já estava perdoado, era ilegal e era justificável: sozinho, som ambiente, nada demais, se não fumasse na frente das crianças, problema era dele e não nosso.
E a água se espalhava pela calçada. O carro de Tone passando colado ao meio fio, olhando para as casas das pessoas e o Aquiles brincando com a mangueira ligada, meu vizinho jogou uma semente no seu quintal e Paulinho atira um pedaço de ponta de encontro ao parabrisas do carro.
Era ilegal e injustificável: carros passando na rua, um animal indefeso, o parabrisa manchado com o teco no vidro. O problema passava a ser nosso.
—Sai aí pra nós dois batermos um papo. Coisa rápida, só eu e você.
— Jamais.
— Não dê mais motivo para eu voltar aqui.
Paulinho ficou parado tranquilo, nem aí, enquanto a fumaça do escapamento ia tomando o caminho de outra rua. A ideia de Mailé morder para além da broma diária era risível. A maldade dos carecas tem limite.
Mas aí é que estava o efeito: sempre seria surpresa o ataque. Algo muito bom no Mailé é como ele é encarado: todo mundo ri, ri muito, até não rir mais. Uma esquina, duas ruas, três avenidas, um matagal e tudo o mais na blusa de Paulinho seria sangue e cheiro de desodorante vencido pela adrenalina.
Tone passa na casa de cada um dos amigos, os velhos, ele leva para que digam para o bairro quem manda. Não basta ensinar uma lição, tem que ter gente que possa repercutir, ou melhor ainda, torcer por ele e testemunhar a legítima defesa de Roberto.
Não tem aviso, só a vista ao longe, um carro acelerando em frente ao portão, a mangueira seca que nem a boca, o corpo furado, e o cachorro meio ensaboado e ganindo.
Da redação: este é o décimo quarto de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. O folhetim sai toda sexta neste mesmo portal (Aboio) e nesta mesma hora.
As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.