eu anotei aqui, mas acho que anotei errado
eu te olhando olhando a chuva. lembrei de uma aula de história da arte que a professora mostrava um quadro e falava “olha esse cara aqui, olhando pra esse, olhando para aquele, e te jogando pra fora do quadro.” meu olhar ia caminhando pelos homens e de repente era arremessado para o batente da porta da sala. entrava de novo no quadro e pronto, a mesma coisa. essa mulher estragou a pintura pra mim, pensei, fitando aquele belo exemplar de batente de tom azul-sabão-em-pó-tixan-ypê levemente descolado da parede.
tinha umas outras pinturas que o olhar ia de um para outro para outro e no fim voltava para o primeiro. você ficava presa lá dentro, igual paralisia do sono. Stendhal teve isso, elaborou mais poeticamente e virou uma síndrome. eu tive isso, elaborei mais mundanamente e virou “nossa, dá uma gastura, né”.
mas voltando pra você olhando para a chuva: eu não gosto muito de chuva. eu gosto olhar você fazendo coisas que não entendo.
você desencostou do batente da porta e foi lá tomar chuva. chamou os cachorros. ninguém foi. não gosto de chuva porque é um negócio que eu não posso controlar. quando era criança, me contaram a história do dilúvio sem as devidas contextualizações e depois disso toda vez que chove eu penso “e se não parar mais?”
-já tá parando
-depois pega uma gripe e vai passar pra mim.
Paula Gomes é doutora em Cinema pela Unicamp, divulgadora científica, fotógrafa e videomaker. Assina como “Ceci”, no Medium.
