Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, não tem nenhuma premiação expressiva na última década. Entretanto, a torcida permanece.
Por que o Paulinho não sabia?
Maria sabia. Tonico sabia. Joaquim sabia muito, até demais.
Maria não sei se sabia, mas gostava. Tonico entrava na onda do Joaquim e meio que acabava gostando. Paulinho não, porque Paulinho estava fazendo uns desenhos na cartolina.
Alguém jogou uma revistinha para a criançada e não tirou a etiqueta. Maria quem achou na gaveta de cuecas do pai no final de domingo. As mãos suavam de um negócio gostoso e sem nome. Enquanto os adultos dormem depois do almoço, ela se pega proibindo o pensamento de tomar a revista para si, para que, no dia seguinte, no espaço dos velhos amigos, mostrar o que ninguém tinha ideia. Ou tinham? Enfim, bom é trocar um dedinho de conversa com os garotos sobre aquilo. Os meninos sabiam mais o que era essa coisa, certeza. E já fechando a mochila, se não soubessem, os colegas sempre poderiam gostar também, pelo sabor da novidade que era.
Maria enviou um papelzinho para Joaquim e Tonico e pediu que ficassem esperando o fim do dia, porque tinha um grande segredo para mostrar para eles. Enorme. Muito grande mesmo.
Toca o sinal da aula e os três vão para o terreno baldio, caminho de volta ao ponto de ônibus. Ruínas de uma guerra futura, garrafas de vinho, pedaço de concreto, entulho nosso. Ela tinha guardado um teco de guaraná e, com os dois sanduíches e meio dos restos dos amigos, um maço de Holywood e um walkman, o dia ficava mais bonito. Um céu sem nuvens sabe demais da felicidade.
Com o farelo de pão ainda circulando no ar, eles riam das poses das meninas e meninos e comentavam que quando fossem muito grandes já estariam assim também.
– Até uns quinze eu imagino que não vou ser mais virgem, só eu namorar com algum menino bonito e legal, de preferência cheiroso.
– As baleias fora do mar ficam assanhadas né, Joaquim? Comigo é Nina ou nada. Ela gosta de um menino mais novo, acho que até o fim do ano eu possoaproveitar também –, dizia Tonico e estendia um cigarro a Maria antes dela demonstrar qualquer coisa que estragasse o clima de harmonia.
– Eu não sou mais virgem.
Alguém já tinha jogado uma revistinha de sacanagem para o Joaquim. Uma revistinha de fumaça e luz baixa, apresentada pelo pai em um ritual introdutório. Ele dizia de alguma coisa de sua experiência e lembrava das densas paredes azuis e molhadas, a irritação com o cloro do chão recém limpo. E uma voz que dizia com palavras peremptórias que a casa das primas estava sempre cheirosa.
– Desembucha então como foi.
– Normal, Tonico, não tem nada de muito diferente do que vocês estão vendo aí –, e apagava o cigarro da amiga.
Maria guarda a revistinha entre os cadernos. Os três ajeitam a mochila nas costas e caminham. O chap chap do tênis batendo no cascalho vazio e a ruína no prenúncio de uma violência compartilhada.
A panela de pressão anuncia o feijão quentinho. E chia o fogão e joga mochila na mesa da cozinha e se espalha pelo sofá da sala. Sonha com um menino errando a palavra scissors, pensa no colega de sala, Paulinho, garoto um pouco metido. Maria é acordada com a mãe batendo uma folha de papel na cara da filha:
– De quem é isso?
– Foi um menino da escola que me deu pra eu guardar só, eu juro pra senhora que eu nem vi nada, ele que colocou dentro da minha mochila sem eu saber, pode até perguntar para o Tonico e o Joaquim, eles vão falar a verdade.
Alguém jogou uma revistinha de sacanagem para a criançada e uma loção Fiorucci para a mãe de Maria. As melhores mães se arrumam antes de xingar a direção.
Da primeira carteira onde se sentava Maria, fingindo copiar a lousa, ela viu a cabeça do diretor e da mamãe. Nem bem foram chamados os três e uma lágrima caía dela, sinal indubitável de que nunca seria médica ou advogada ou ainda, quem sabe, presidente! Tonico agia como Joaquim quisesse, apesar do piriri, ele se prostrava como se a palavra pornografia fosse nova no dicionário. Joaquim coçava a orelha e pensava numas coisas secretas.
Começa o monólogo do diretor sobre a importância de fazermos o bem na vida de cada um, independente de quem seja, e que, às vezes, o bem significava agir de maneiras que poderiam parecer, sob uma primeira vista, controversas. A questão de dizer sobre o dono daquela revista não era sobre o autor, mas sim sobre salvá-lo e valorizar a infância e as crianças. Independente de quem tivesse a revista, menos se fosse adulto, o importante era dizer, falar tudo o que eles sabiam, ou ainda mais, intuíram.
Da redação: este é o sexto de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. Durante as próximas semanas, a Aboio publicará os capítulos seguintes, na melhor tradição do folhetim, toda sexta-feira, às 19h.
As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.