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Voltar pra cidade, por Yvonne Miller

por Yvonne Miller
Arte: The Blue Tress, de Antonio Bandeira (Fortaleza,1922 - Paris, 1967), para acompanhar crônica de Yvonne Miller

Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Ed. Aboio, 2023).


Tomar um café contundente na casa do vizinho e despedir-se dele com os olhos marejados. Percorrer pela última vez a casa vazia. Forçar malas, mochilas, sacolas, violão, travesseiros e demais embrulhos pra caberem no Fiatzinho. Tranquilizar o Salém: vai dar tudo certo – miau! Levar o Chico a um último passeio pelo condomínio. Passar ao lado das bicas e piscinas naturais. Pensar que deveria ter aproveitado mais. Saber que aproveitei bastante. Tirar algumas fotos da paisagem verde, como se já não tivesse mil fotos iguais. Acenar pra Larissa quando ela passa com o carro. Falar pro Chico que vamos encontrá-la mais à frente. Dar um abraço de despedida nos funcionários que encontro ao longo do caminho. Agradecer e desejar tudo de bom. Dizer que vamos voltar pra visitar, sim. Chegar suada na portaria – de repente já são 11 horas –, acomodar o Chico no banco traseiro, a caixa do Salém aos meus pés, o cacto de estimação entre os joelhos e pegar a estrada.

Rodar quatro horas. Reclamar do trânsito em Abreu e Lima. Lembrar da Feijão em Goiana. Resistir ao desejo de vê-la só mais uma vez. Mandar uma mensagem à tutora nova e perguntar por ela – está bem. Ficar dois dias em Pipa para curtir o processo. Gostar mais da cidadezinha do que nas visitas anteriores porque todo mundo é muito simpático com Chico. Tomar banho na Praia do Amor. Comer empanadas argentinas, tacos mexicanos e um prato sírio. Ouvir espanhol, alemão e inglês nas ruas. Surpreender-me com Chico porque se comporta bem com os carros e motos. Brigar com Chico porque voltou a latir pros carros e motos. Desviar dos cães-sem-dono. Entrar no quarto com cautela e ver que o Salém continua embaixo da cama.

Pegar a BR de novo. Ir com o sol. Ficar tensa com o povo doido no trecho Natal – Mossoró. Falar pra Larissa que posso dirigir também. Ficar aliviada ao ouvir que não precisa. Olhar pela janela e perceber a mudança na vegetação. Dar um suspiro ao entrarmos na pista duplicada junto com o anoitecer. Entrar em Fortaleza e dizer que estávamos com saudade. Já estar com saudade de Aldeia. Parar nas Tapioqueiras. Jantar. Lembrar que na ida para Aldeia também comemos aqui. Não poder acreditar que isso já faz três anos. Continuar o último trechinho sob chuva. 

Chegar em casa depois de nove horas na estrada. Não ter a chave do apartamento na portaria. Esperar a síndica chegar com a chave e mil desculpas. Subir as escadas até o quarto andar. Reencontrar o apartamento do nosso passado. Olhar pela janela para um mar de telhas. Armar as redes. Não conseguir dormir de rede. Cochilar e acordar com o barulho de motores, vozes, a TV da vizinha, o sertanejo da rua. Não ouvir mais o canto das cigarras nem a brisa nas folhas. Pensar que mesmo assim eu gosto de mudança. Ter certeza de que coisas boas me esperam aqui.


Arte: The Blue Tress (1955), de Antonio Bandeira. Coleção Andrea e José Olympio Pereira, São Paulo. IAB-1125. Foto de Ding Musa

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