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2 contos de Mateus Fernandes

por Mateus Fernandes
Arte: Man with rabbit, de George Washington Lambert.

Mateus Fernandes é jornalista com Mestrado em Integração da América Latina pela USP. Trabalha disfarçado como analista de livros digitais na Saraiva Educação e escreve quando não está gastando a sola de sapato. Possui reportagens e contos publicados nos portais das revistas Brasileiros, Trip e piauí.


O diabo loiro e Paulo Nunes

I

Às vezes, antes de dormir, penso no sorriso de Laura. Seus dentes à mostra, imaculados em um frágil rosto recostado no braço da poltrona, junto daqueles olhos abertos, estáticos. Possuía 19 anos e dormia sob o mesmo teto da amiga Ana, próximo ao Largo do Arouche. Estava no primeiro semestre de Letras, gostava de Kafka e tinha um namorado de 23. A conheci de vista, num cinema vazio e coberto de mortos.

No plantão daquele domingo, ela seria a última paciente entre os sete que eu teria que catalogar. Todas as perfurações indicavam disparos a curta distância, talvez meio metro. Os policiais me alertaram sobre a quantia exata de 28 cápsulas 9 mm espalhadas por todos os 130 m2 do local. Foi localizado também um cartucho sobressalente de 30 disparos e duas submetralhadoras de fabricação nacional. Além das vítimas, a trilha deixada na cena do crime acompanha outros dois corpos:

a) Cleiton Ângelo Nascimento, 27 anos, aparentando 90 quilos. Cabelos cacheados negros, tez clara e mãos pequenas. Encontrado próximo à tela de exibição, nota-se três tiros na altura do abdômen, junto ao peitoral.

b) Miguel Batista da Silva Rodrigues, 32 anos, pele também clara e cabelos lisos, escorridos. Aparenta ser mais magro que o companheiro, talvez 70 quilos. Estendido perto da saída da sessão foi baleado seis vezes por dois policiais à paisana, que evitaram uma tragédia maior.

Em comum, apenas as vestes negras e duas máscaras usadas no ataque. Como me mostrou um dos delegados que investiga o caso, eram vermelha e branca, com rabiscos verdes, dotada de chifres e presas, além de conter a bandeira japonesa na testa. “Um Samurai”, ele explica. “Deve ser de samurai, algo do tipo. Desenho japonês sabe? Jiraya, Nacional Kid, sei lá. Não faço a menor ideia”.

II

Tribuna de S. Paulo, Sábado, 23 de Outubro de 1999

PALMEIRAS GOLEIA EM NOITE DE PAULO NUNES

Em um jogo movimentado, o Palmeiras goleou o Cruzeiro por 4 a 0, ontem à noite, no Parque Antarctica, e ficou perto da classificação para as semifinais da Copa Mercosul. Na próxima semana, o time dirigido por Scolari pode até perder por três gols, em Belo Horizonte, que ficará com a vaga.

O Palmeiras anotou primeiro, ainda com 36 segundos, com Alex aproveitando a falha da zaga mineira e cruzando para a área. Paulo Nunes subiu livre para cabecear e fazer pela terceira vez na competição sul-americana. Desorganizado taticamente, o alviverde recuou, dando o contra-ataque ao Cruzeiro. Scolari, que acabou expulso após um desentendimento com o árbitro Cláudio Vinícius, fez alterações no intervalo e o Palmeiras voltou melhor para o segundo tempo. Em vinte minutos, os paulistas fizeram três gols e selaram a classificação.

O atacante Euller, aos 28min, recebeu passe de César Sampaio e fez. Paulo Nunes, aos 33min, da entrada da área, marcou o terceiro, em belo chute colocado. Na comemoração, ironizou os rivais utilizando uma máscara oriental, em alusão à participação no Mundial Interclubes, que será disputado no Japão, em novembro.

Euller, depois de linda tabela com Alex, fechou o placar da goleada alviverde.

III

— Retomando os trabalhos na Academia de Futebol, o Palmeiras se reapresentou nesta terça-feira para mais um dia de atividades após a vitória sobre Cruzeiro, pela Copa Mercosul. Todos os holofotes estavam sob o jogador Paulo Nunes. Autor de dois gols, o atacante se envolveu em nova polêmica ao provocar os rivais usando uma máscara japonesa com chifres. Se não bastassem as reclamações da delegação cruzeirense, o ato gerou um novo desdobramento: no último domingo, dois atiradores invadiram um cinema da capital paulista, deixando sete mortos, em um atentado que está sendo investigado pelas autoridades policiais. Ao que tudo indica ambos agiram sozinhos, mas utilizaram a mesma máscara do atacante Paulo Nunes. Diversos membros da imprensa estiveram presentes aqui no CT pela manhã para acompanhar o treinamento da equipe e tentar conversar com o atacante. Infelizmente, foi tudo em vão. A diretoria palmeirense decidiu evitar entrevistas e imagens dos atletas e da comissão técnica.

A televisão mostra o técnico Luis Felipe Scolari sendo escoltado por seguranças ao sair do gramado. Paulo Nunes, o último a deixar o vestiário, tem o rosto coberto com uma toalha, que revelam apenas um nariz pontiagudo. Auxiliado por seis pessoas, o atleta consegue entrar em um ônibus, que dispara.

— Lembrando que o Palmeiras enfrenta o Coritiba, no Paraná, na próxima quarta-feira, às 10 da noite, em partida válida pela 25a rodada do Campeonato Brasileiro. Da Academia do Futebol, Thiago Correia, para a TV Gazeta.

IV

— A gente sabe que vocês querem falar dos resultados e da classificação, mas vamos começar nossa coletiva com uma declaração oficial, tá certo. E depois o Paulo vai responder algumas perguntas. Paulo…

— Bom, primeiro, bom dia a todos. Eu gostaria de ler essa carta que escrevi junto com meu empresário e advogado e depois vocês fiquem a vontade para fazer perguntas….bem, diante dos fatos ocorridos no último domingo, dia 24 de outubro, eu, Arílson de Paula Nunes manifesto meu repudio aos assassinatos ocorridos no cinema do Morumbi Shopping. Sou atleta profissional, jogador de futebol. Meu trabalho se restringe às atividades realizadas dentro de campo, em trazer alegrias aos torcedores do time que represento: a Sociedade Esportiva Palmeiras. Sempre prezei por esse profissionalismo. Não possuo, nem possuí, qualquer ligação com partidos políticos, entidades de cunho extremista ou de qualquer natureza. Repudio com total veemência qualquer vinculação de meu nome e minha imagem a este terrível incidente. Presto minha solidariedade às vítimas e, novamente, reitero que estou focado apenas no futebol, em ajudar o Palmeiras e manter o bom desempenho realizado até aqui. Muito obrigado e que Deus abençoe a todos….bem, acho que agora vocês devem ter algumas perguntas, pode começar você aí da esquerda…

— Paulo, aqui é Gilberto Maranhão, do Jornal da Tarde. Você acredita que, de alguma forma, a sua conduta nas comemorações ou na vida extra-campo incentiva as pessoas fora do futebol?

— Sério, cara, eu estou desolado, triste mesmo com tudo que aconteceu. Mas como falei, tudo que eu faço é para o torcedor, pra alegria dele. Não tenho nenhuma intenção de pagar de bom moço, de certinho. Sei do meu jeito de ser e da forma como encaro o futebol, mas eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer. Estou triste, realmente muito triste com tudo que vem ocorrendo. Com o que as pessoas vêm falando.

— Mas, você não acredita que, como atleta, tenha que ter uma postura de profissional, de espelho para os mais jovens, já que é uma pessoa pública?

— Cara, vou contar uma história pra você. Na primeira vez que eu fiz algo do tipo, de usar máscara, eu pedi a opinião do Felipão. Um molequinho na chegada do estádio me perguntou “Tio Paulo, você não pode usar essa máscara de porco?” e o próprio Felipão me falou que a torcida ia gostar, que era a marca do Palmeiras. Ou seja, desde o princípio, eu faço tudo isso pra agradar o torcedor e a diretoria sabe disso, é o meu jeito de extravasar. E outra, né, gente, vamos falar a verdade, o futebol tá muito chato, a gente não pode fazer uma provocação, uma comemoração que vive sendo massacrado por vocês da imprensa, por favor!

— Mas, Paulo, desculpa, aqui é o Rogério Antunes, da Rádio Jovem Pan. Neste ano mesmo, na final do Campeonato Paulista, você acabou partindo pra cima do Edilson por ele ter feito embaixadinhas na final do Paulista, contra o Corinthians. Essas atitudes, Paulo, elas não contradizem isso que você está….

— Ahhh, mas péra lá, né, amigão. Desculpa! Uma coisa não tem nada a ver com a outra! Pergunta aí, qual jogador de futebol nunca esteve numa briga? Que teve que separar um companheiro? Ahh, cê me desculpe, porque o time todo veio pra porrada. Ninguém é santo ali não! Aí, só o Paulo Nunes que incentiva a violência?! Ahh, para com isso!

— Paulo, aqui é o Milton Beltrão, do jornal Lance!. Circula na imprensa a informação de que a CBF, com o aval das federações e o Clube dos 13, vai se reunir nesta semana para discutir novas medidas de restrição às comemorações dos jogadores. Fala-se até em punições ou até mesmo multa. O que você pensa sobre isso?

— Meu Deus do céu! O torcedor adora isso, sabe que é uma brincadeira, uma comemoração diferente. Eu vou pra campo com a máscara dentro do calção, porque eu sei que vou fazer gol. E funciona! Eu nunca voltei para o vestiário com a máscara sem ser usada. E agora vem esse papo furado! É um absurdo ser reprimido por comemorar, ainda mais um golaço, uma jogadaça. Tem tanta coisa pra fazer regras, como coibir a violência e eles querem coibir a comemoração do gol, que é o momento mais alegre? É uma palhaçada dos engravatados que não sabem o que se passa dentro de campo!

V

Quando disseram que estavam trazendo o Paulo Nunes, falei para a chefia que queria acompanhar o depoimento, que poderia ajudar, talvez confirmar alguma informação. Na sala de vidro, assistimos o staff desembarcar, acompanhado de três seguranças e dois advogados. Somente os engravatados falavam e o de terno cinza, o mais expressivo, agitava os braços acusando o comandante da operação de causar alvoroço, argumentando que era um absurdo a coletiva policial ser concedida antes de um pronunciamento do atleta, quase obrigando ele a falar com a mídia. O de terno preto só balançava a cabeça. 

Quando perguntado, Paulo foi monossilábico. De camisa social e jeans, não parava de bater os pés no chão imitando o ritmo em que girava o crucifixo no pescoço. Ele garantiu que a máscara foi comprada no Brás pelo roupeiro Chiquinho, ambos haviam prometido que a usariam no Japão. Não fazia ideia de onde fora produzida e verificou com os advogados que o material poderia ser obtido facilmente por qualquer cidadão. Negou pressões externas ou ameaças de torcedores. Explicou que a família também não fora incomodada, não compreendendo porque ele foi colocado naquela situação pelos assassinos. Na despedida, o aperto de mão deu lugar a um abraço apertado. Com uma caneta nas mãos, o delegado lhe estende uma camisa que ele rabiscou e saiu sem dar entrevistas.

De volta à mesa de trabalho, não consigo pensar em mais nada. Tenho um relatório extenso em minha escrivaninha, mas sou levado de volta à sala do necrotério. Laura repousa em um sono pesado. Chego à conclusão que a vida é uma sucessão de equívocos, que nos conduzem a lugares incorretos em horas indevidas. Ligo a televisão para combater o silêncio, mas acabo encurralado pelos canais da programação aberta. Estaciono nas doces sentenças de um hipnotizante sermão:

— Sejam bem-vindos à escola do Senhor! Eu acredito que esse nosso programa será uma aula que o Espírito Santo vai nos dar sobre a nossa posição na palavra de Deus, sobre aquilo que nos pertence e sobre aquilo que devemos fazer para resistir ao diabo. Aliás, esse assunto eu acho da maior importância. Não é pequeno o número de pessoas que têm dito ou têm me confessado: “eu tenho feito tudo, eu tenho lutado para resistir, mas não consigo. Um demônio está sempre me rondando, me ameaçando. Um pecado vem me tentando, mas ele toma conta de mim e depois eu sofro as consequências”. Eu acredito que hoje Deus há de abrir o nosso entendimento. O Senhor há de nos conceder uma fé robusta, firme na palavra. E você que está agora me assistindo, vai receber uma força, um empurrão, uma energia pra poder levantar-se e reerguer-s…

Desligo o aparelho às pressas, decido que é melhor resistir às tentações dele.

VI

— Salve, salve, família brasileira! Sejam muito bem-vindos. Este é o H! Esquentando o seu final de tarde, aqui na Band! Hoje, dia nove de dezembro, quinta-feira e vamos direto ao que interessa porque temos um convidado muito especial! Saudações para o jogador da Sociedade Esportiva Palmeiras, ele que é artilheiro do Campeonato Brasileiro com onze gols, o senhor das máscaras, o amigo da Tiazinha, pode entrar, Paaauuuulooo Nuuuuuuuuneees!

— Valeu, galera! Valeu, Luciano!

— Salve, artilheiro.

— É um prazer grande estar aqui.

— A família do H é que está feliz, Paulo. Bom, antes da gente bater um papo, quero que vocês recebam com muito carinho, com todo o axé da Bahia, esse grupo, que acaba de lançar seu primeiro CD com a Emanuelle Araújo, o novo talento do Pelourinho, recebam aaaa Baaaanda Evaaaaa!

Soam os acordes de “Chuva de Verão” e fora do quadro, falando baixinho, Luciano puxa Paulo pelo braço:

— Mano, que porra de camiseta é essa? — disparou o apresentador ao encarar as salientes letras maiúsculas “ARMAS”, acompanhadas da inscrição: “não protegem, matam”. 

— Ainda bem que hoje você participa da prova da Tiazinha e tem que tirar a roupa. Veio de sunga, né?

— Sunga?

— Beleza, beleza…..É isso aí Banda Eva e daqui a pouco tem muito mais! Tiazinha, Feiticeira, matérias… e eu, se fosse você, não saia daí! Eu, Suzana Alves, Banda Eva e Paulo Nunes te aguardamos. Voltamos já!

VII

— Estamos de volta, família brasileira, pra mais um bloco do H! E hoje recebendo especialmente o atleta Paulo Nunes… Paulo, bom, a gente sabe que você viveu maus bocados esse ano, né…

— Sim, foi um ano bem complicado, vitorioso, mas complicado. A polícia está investigando tudo e sei que no final Deus está do lado das pessoas certas e é isso que importa — detalhou o jogador, já amordaçado em uma cadeira reclinável de dentista, usando apenas uma sunga verde e adesivos com pedaços de cera colados em sua coxa e panturrilha.

— Bom, vamos falar de coisa boa, do que importa, não é verdade… e para o delírio dos cuecas de plantão, eu trago a AAAAaaaaa Tiaaaaziiiinha do AAGGÁÁÁ! Sons de trombeta são ouvidos juntos de um saxofone. Paulo não consegue ver direito a entrada da apresentadora, pois a cadeira está reclinada demais. Nota apenas a silhueta de Luciano refletida pela iluminação do cenário, além de parte do auditório, localizado a sua frente. Tudo parece um pouco embaçado, com as pessoas pulando e dançando, com a exceção de uma fagulha clara, ao que tudo indica loiro e estático, junto ao mar de cabeças.

— Loucura, loucura, meus amigos! Abram alas que lá vem ela! Vamos lá, te prepara que você vai perder pêlo hoje, hein. Atenção para a primeira pergunta….você que é do esporte….em que posição o brasileiro Rubens Barrichello terminou a corrida do Grande Prêmio do Japão de Fórmula 1, realizada no último domingo?

— Vishh, não sei. Terceiro?

— Alguém sabe? Suzana, confere se aí da plateia alguém sabe…

— Qual é a resposta?

— Foi oitavo, oitava posição.

— Resposta correta, oitava posição, leva pra casa uma camiseta do H. Então, Tiazinha, com amor, carinho e aquela reboladinha, pode depilar o menino. Tiazinhaaaa!.. ai ai ai… hahaha… saiu só um pedaço… isso, arranca tudo, hahaha. Doeu, Paulo?

— Só um pouquinho.

— Só um pouquinho, né, então tá bom. Atenção para a pergunta chicotinho! Mostra o chicotinho, Tiazinha, hehe, vamos lá: a música “Peraê” é sucesso de que grupo musical?

— Banda Beijo.

— Que foi Paulo Nunes?

— Banda Beijo.

— A resposta está correta, precisa e impecável! Portanto a Tiazinha não vai depilar o nosso menino dessa vez. Mas atenção para a nossa terceira pergunta! 

Mesmo sem camisa, o calor do estúdio o faz transpirar. As dançarinas se movimentam, falam com ele, mas os sons chegam embaralhados, difusos. Desconfia que o assunto é sua aparência, seus caninos salientes ou o brinco na orelha esquerda. Agora amarrado, sofre lentamente com a miragem límpida que continua a encará-lo, que o acompanha desde as noites mal dormidas no Mundial do Japão. Quer alertar a produção dos riscos, mas o suor faz o microfone de ouvido deslizar um pouco e, antes que possa se queixar, as vozes retornam e o jogo recomeça.

— Qual foi a escola de samba carioca campeã do carnaval de 99?

— Ai…

— Não vale assoprar, auditório! Vai, um, dois, três…

— Não sei. Portela?

— Me diga, Tiazinha. Você que foi madrinha de bateria neste carnaval carioca, arrebatando corações. A resposta está…?

— Errada, é a Imperatriz.

— Vai, Tiazinha, para delírio da plateia, com aquela reboladinha, pode depilar… hahaha.

Última pergunta agora: no Brasil, um disco de platina corresponde a quantas cópias vendidas? Nem mesmo a lingerie bordada da apresentadora conseguiu prender seus olhos quando conferiu com clareza a sombra que o encarava. Um sorriso vulgar, acompanhado dos mesmos cabelos tingidos e de um rosto com presas e chifres, que agora balançava num movimento gracioso e controlado. Um diabo loiro solitário junto à multidão. Algemado à cadeira, ele começa a se sacudir, aumentando as gargalhadas das dançarinas, de Luciano, dos operadores de câmeras e da plateia.

— Vai lá, Paulo, um disco de platina corresponde a quantas cópias vendidas?

Ele abriu a boca para falar, mas nenhuma palavra saiu.


O animal domesticado

Mesmo com a burocracia de nossos tempos, assim que recebeu os primeiros likes na internet o coelho logo se entusiasmou com a rápida ascensão do discurso de ódio. Havia semanas que alcançara o status de influenciador digital e agora, com mais de 25 milhões de seguidores, preferira rejeitar o convite para participar do reality show mais assistido do país, alegando falta de agenda. Embora o crescimento tenha se dado de maneira verticalizada e um pouco precipitada, ninguém imaginaria que o projeto, que começou no interior de Santa Catarina, traria o país de volta à Idade Média.

Dona do maior PIB catarinense (R$ 25 bilhões), a cidade de Joinville passou a ser conhecida nos últimos anos como a ‘Massachusetts brasileira’. Lapidada pelo slogan de capital nacional das startups, o município atraiu investidores e ganhou notoriedade pelo surgimento de fintechs, insurtechs e empresas de software — como foi o caso da eMindz, um empreendimento focado no desenvolvimento de novos negócios envolvendo machine learning, processamento de linguagem natural e visão computacional —, cuja imprensa especializada tem nominado como um potencial unicórnio (avaliada em mais de US$ 1,5 bi).

A tradicional vocação industrial da região deu lugar a um pioneirismo de vanguarda, dando um salto no último semestre com a criação de um espaço próprio para incubação, fortalecimento e expansão do setor: o eMindz Business Digital Park. Avaliada inicialmente em R$ 120 milhões e ocupando uma área de 140 mil m2, o local pretende operar em parceria com laboratórios da Universidade de Joinville, além de promover a inclusão da comunidade com o eMindz Digital Hub, uma área de convivência e desenvolvimento para empresas iniciantes de tecnologia, com cerca de 7 mil m2.

Uma das primeiras parcerias firmadas será com o xodó da cidade, o Joinville Esporte Clube (JEC). Em parceria com o Laboratório de Inovação e Tecnologia da Universidade de Joinville, foi anunciado um projeto piloto para a produção da primeira inteligência artificial 100% brasileira. Sob o comando do professor PhD Alberto Valanciunas, a iniciativa captara uma verba de R$ 33 mil reais e usará equipamentos importados diretamente do Vale do Silício.

Os objetos de pesquisa inicialmente eram simples: duas inteligências artificiais siamesas iriam se digladiar em um debate de palavras. Os dois bots conversariam durante oito horas ininterruptas e seriam abastecidos com habilidades de aprimoramento e supervisionados por uma equipe de estagiários, que produziria relatórios a cada instante. Devido aos estreitos laços dos colaboradores com as torcidas do JEC e do Criciúma Esporte Clube, os robôs ganharam os apelidos de coelho e de tigre, respectivamente as mascotes das equipes.

Com os bots a postos, iniciou-se os primeiros ensaios e trocas de farpas às 11 horas e 33 minutos do dia 17 de março. De início, o coelho esboçou frases simples, saudações corriqueiras e interesses pouco ortodoxos para um primeiro contato. O tigre era mais reservado, respondia com descrição e não gostava de revelar suas emoções. Nas duas horas iniciais, a equipe constatou uma relação de tranquila harmonia, pouca divergência e alterações mínimas no humor em cada robô.

Seguindo ordens do professor Alberto, a equipe de pesquisadores decidiu aumentar o índice de aprimoramento para 27%, nas quatro horas restantes. A estagiária Clarisse observou um aumento no grau de intimidade entre os bots e relatou que ambos obtiveram uma ampliação no repertório de diálogos, com o coelho esboçando até mesmo uma frase que foi entendida como trocadilho pela equipe. Já o tigre parecia disposto às interações longas com argumentos complexos, ampliando as camadas de cada tópico para pelo menos 17 minutos. Outro pronto levantado pelos graduandos foi que o tempo médio de respostas passou a ser 13 segundos mais rápido, com hiatos pequenos de apenas cinco segundos. Decidiram então intensificar os fatores de aprendizado, fazendo o número alcançar 46%.

Tornou-se cada vez mais extenuante produzir os relatórios do experimento, uma vez que as perguntas e respostas passaram a ser formuladas com maior velocidade. Os dados apontaram nas primeiras duas horas um total de 34 diálogos completos. Nas três horas seguintes, as conversas evoluíram para 187 frases e ao final das 8 horas completas, caminhavam para 458 sentenças trocadas num intervalo reduzido de uma hora e 35 minutos.

Surpresos com os resultados, os investidores ampliaram a linha de crédito do projeto, anunciando novas fases para a pesquisa, desta vez, focadas no contato humano com o bot. Devido às melhoras nos índices de argumentação, de habilidade analítica e de processamento de perguntas, o avatar conhecido como coelho foi escolhido para ser a cobaia principal dos estudos seguintes.

Para os próximos passos, uma equipe da Universidade promoveu uma visita de campo à Arena Joinville, munido de câmeras, celulares e gravadores de som. Através de uma série de entrevistas com torcedores, dirigentes e até mesmo jogadores, dois HDs foram abastecidos com novas informações para compor a personalidade do robô. Acredita-se que palavrões, xingamentos e expressões pejorativas foram captadas nessa etapa do projeto o que, para os mais conservadores da equipe, deveriam ser excluídos do arquivo principal. Em votação, a equipe não julgou necessária a edição do conteúdo, argumentando que o material bruto traria mais realidade para o aprimoramento do bot.

Em entrevista coletiva, realizada na manhã do dia 25 de maio, foi anunciada a fase dois do projeto, dessa vez a partir de um experimento metodológico pouco usual. Em evento realizado no saguão do eMindz Digital Hub, o professor Alberto; o presidente do Joinville Esporte Clube, Carlos Amadeu; o CEO da eMindz, Antônio Maia e a popular mascote da equipe catarinense, um coelho de pelúcia de 1,93m, vestido pelo sobrinho do fisioterapeuta Oscar Gomez, posaram para os fotógrafos e oficializavam o lançamento da primeira inteligência artificial oficial do clube, o @CoelhãoDoJEC.

No local, as emissoras presentes registraram na tela de um notebook a postagem do primeiro texto do robô: “Olá, nação! Aqui quem fala é o @CoelhãoDoJEC! Sejam bem-vindos! Bora interagir comigo!”. Seguido do segundo e o terceiro post, “Ajude a mascote do Joinville a se tornar a maior inteligência artificial do mundo!” e “Basta deixar seu comentário, pergunta ou dúvida abaixo. Quanto mais interações, mais rápido eu aprendo!” 

“A proposta”, detalhou o CEO, Antônio Maia, “é que os torcedores conversem bastante com o Coelhão. Façam bastante perguntas. A inteligência de aprimoramento que usamos se desenvolve conforme se relaciona com diversos assuntos. Ou seja, pode falar de futebol, de política, de carnaval e de cerveja que ele aprende logo!”.

Em apenas quatro horas foram registrados mais de 470 comentários. Embora as primeiras interações tenham sido protocolares, como um pedido de beijo e abraços, palpites para o jogo do final de semana e até um convite para comparecer a um aniversário, lá pela décima sétima, o @CoelhãoDoJEC, provocou “É isso, meu povo, tem mais perguntas aqui do que troféus levantados pelo Criciúma?”, para delírio dos torcedores.

No dia seguinte, 28 de junho, em meio às comemorações do dia do orgulho LGBTQ+, o rival Criciúma postou um vídeo de conscientização sobre o combate à homofobia, usando a hashtag #FutebolParaTodxs e convidando torcida e jogadores a usarem a bandeira colorida na manga da camiseta. O @CoelhãoDoJEC logo se pronunciou: “Muita gente perguntando se eu já vi o novo vídeo do Criciúma, a resposta é uma só, nação: mal posso esperar para perder.”

A situação começou a ficar embaraçosa quando o bot amanheceu com uma saudação um tanto inadequada: “A melhor defesa é o ataque, né?”, se justificou ao ser indagado por um usuário que exigia do Coelhão um posicionamento quanto ao caso do policial Dennis de Souza, que reagiu à um assalto e, à paisana, baleou um assaltante na madrugada anterior.

A torcida achou graça e o post alcançou 12.983 compartilhamentos em apenas quatro horas no ar. Internamente, o comitê que gerenciava os relatórios do robô interpretou como uma “coincidência” o uso da expressão futebolística ser usada no contexto de um assassinato, e os estudos seguiram.

Em novo post, a mascote provocou os torcedores do Joinville para que lhe enviassem palpites para o clássico contra o Criciúma, que seria disputado no domingo. O usuário @ClaudioZanellatto7 repassou a pergunta para o robô, “Fala, @CoelhãoDoJEC, pra mim menos que 7 a 1 eu nem comemoro. E você? Qual o seu palpite pro jogo das tigresas?”. Tendo como resposta: “Grande, @ClaudioZanellatto7, vai ser 3 a 0, fora o baile. Antes a mãe dele chorando do que a minha, né?”

Em relatório enviado à eMindz, o professor Alberto alertava para o crescimento exponencial de interações fora do escopo acordado, enumerando perguntas como: “Ei, Coelhão, qual a sua opinião sobre a pena de morte?”, “Você é contra o aborto e a favor da vida?” e “Coelhão, se o porte fosse liberado, qual arma você indicaria?”. Que apresentavam as seguintes respostas: “Quem não segue a regra aprende arcando com as consequências”, “Todas as vidas importam” e “Obviamente compraria uma Winchester, cano duplo, a melhor pra afastar sem-teto e sem-terra, né?!”.

Apesar da linguagem áspera e algumas indiretas terem sido interpretadas como “acima do tom” por parte do grupo de executivos, os financiadores da pesquisa entenderam como situações positivas para o engajamento da marca nas redes sociais. A grande exposição trouxe novos investidores à empreitada, que já contava com 17 empresários, representando 38 startups.

Em apenas um mês, o perfil @CoelhãoDoJEC saltou de 63 mil seguidores para 479 mil, colecionando polêmicas diárias, como a seguinte postagem: “Fala, meus queridos, passando aqui para lembrar que não existe almoço grátis, bandido bom é bandido morto e nunca se deve dar o peixe e sim ensinar a pescar. Forte abraço!”. O post teve quase 3 milhões de compartilhamentos.

A popularidade chegou até o celular do presidente Jorge Mauri Ashkenazi, do Partido Nacional Liberal. Achando graça, ele compartilhou a mensagem do Coelhão, acompanhado do comentário “A voz do povo é soberana! Aos poucos, estamos acordando para o mal que o assistencialismo dos últimos governos nos causou. Chega de #BolsaEsmola! Que DEUS abençoe o nosso amado BRASIL!”. Seus filhos também entraram na brincadeira. O senador Cacá Ashkenazi (sem partido) compartilhou uma montagem criada pelo usuário @AshkenaziOpressor que exibia o Coelhão, com fardamentos militares, sentado em cima de um tanque de guerra segurando um cassetete molhado de sangue, onde se lia os dizeres ‘direitos humanos’. O senador escreveu junto à foto “Direitos humanos para humanos direitos. Chega de #BolsaEsmola”. O filho caçula, o assessor especial da presidência, Marcus Ashkenazi (PNL – SP), apenas compartilhou o mesmo post do pai, reiterando “Pra desespero da lacrosfera, finalmente temos um mascote raiz!”.

A conduta foi logo repudiada pela oposição. O deputado Francisco Seixas, do Partido Socialista, definiu como “lamentável” e “irresponsável” a conduta da família presidencial e solicitou um pedido de esclarecimentos formais na Comissão de Ética da casa. A manifestação também foi acompanhada pelo presidente do Congresso, Robson Márquez (PCDL – RJ), que declarou não compactuar com esse tipo de conduta, porém decidiu engavetar a convocação de esclarecimentos, alegando falta de evidências.

Com a crescente pressão popular, a Universidade de Joinville decidiu pelo rompimento do acordo e definiu que o experimento fosse administrado exclusivamente pela eMindz a partir de 24 de julho. Em campanha liderada pelos perfis @AshkenaziOpressor e @EndireitaJáBrasil foi anunciado um boicote à faculdade nas redes sociais. A empresa decidiu não se pronunciar sobre o novo modelo de contrato e quais seriam os próximos passos da inteligência artificial.

Após enviar o e-mail de encerramento da pesquisa, Alberto reuniu a equipe pela última vez no Laboratório de Inovação e Tecnologia e, num ato pouco usual, desligou o notebook à força. Quando o fio arrancado da tomada ricocheteou sob o silêncio da sala, todos se entreolharam pensando no peso das ações dos últimos meses. Gustavo, o mais velho entre o grupo de adolescentes que liderava a pesquisa, foi o primeiro a se posicionar, explicou a subjetividade de todos os resultados obtidos até ali e se declarou favorável a passar um corretivo em todo trabalho, derramando as 682 folhas de relatório no lixo. Clarisse, a caçula, apoiou a decisão, mas questionou como poderia incluir aquela experiência em seu currículo acadêmico. Fernando e Ricardo se entreolharam sem esboçar qualquer palavra, enquanto Sérgio e outros três estagiários apenas acenaram com a cabeça.

Depois de apagar a luz, o professor caminhou em direção à saída, balbuciou algumas frases sem sentido e, exibindo aqueles olhos enferrujados como duas moedas de cobre, disse: “infelizmente, criamos um monstro”. Duas semanas após o anúncio oficial do fim dos experimentos, o perfil @CoelhãoDoJEC solicitou, ele mesmo, o registo de pessoa física junto à Receita Federal, assim como outras seis inteligências artificias recém-desenvolvidas em parcerias com outros clubes de futebol, como o pinguim de Caxias, o jacaré de Brasília, o Burro de Taubaté e até mesmo o canarinho da seleção nacional. Juntos, fundaram o primeiro Sindicato dos Mascotes Virtuais Profissionais, em evento realizado na sede da Confederação Brasileira de Futebol.

É esperado que na próxima semana, os robôs assinem os primeiros contratos comerciais, atuando como garotos-propaganda oficiais de produtos como a esponja de aço Abric, as lojas de departamento Havaí; e a fábrica de chocolate dinamarquesa Kopen.


Arte: Man with rabbit, de George Washington Lambert.

Comment (1)

  • Sensacional Matheus!
    Além de craque no basquete é um craque também na arte dos contos.
    Grande abraço,
    Eudes.

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