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Em todo lugar ou lugar nenhum

por Letícia Furlan
Desenho de Ariyoshi Kondo que mostra um ramo com folhas verdes e flores brancas caídas.

Letícia Furlan tem 22 anos e faz graduação em Ciências Sociais na USP. Suas referências são, sobretudo, do campo da Antropologia. Produz poesias, pinturas e fotografias além dos contos.


Em todo lugar ou lugar nenhum, 01 de setembro de 2023

Com os olhos abertos, rompo a escuridão.

Acordo com a claridade invadindo o quarto. Não vejo o sol, mas sei que ele está lá, radioativo atrás da cortina de nuvens acinzentadas que, inutilmente, busca proteger a terra da insolação, vedando o céu pela manhã. Por sorte, só sentiria o mormaço se estivesse fora de casa. Na minha cama, meu corpo afunda no colchão, de modo que sinto fazer parte dele. Deixo meus olhos rodopiarem o teto esbranquiçado, se perdendo na vastidão de branco gelo. Esse nada que vislumbro todas as manhãs sempre me lembra da falta, uma falta fantasmagórica, ausência constante de não sei o quê. Sinto o vazio e já não me pergunto quais serão as ações do dia, pois não importa, não têm relevância. Hoje será um dia tão único quanto ontem, quarta-feira ou o décimo sétimo dia do mês. Sabendo disso, faço meus olhos rodopiarem por mais algumas horas, até que o incômodo de estar na mesma posição me tira das cobertas. Calço meus chinelos e desço as escadas em direção à cozinha.

Não acendo nenhuma lâmpada, pois a luz do sol também decidiu banhar esse cômodo e, apesar da invasão do meu domicílio, gosto do efeito — curioso como o sol pode ter uma face afável e outra assassina, a depender do ângulo. Coloco água em um caneco a fim de fazer a tarefa mais elaborada do meu dia. Levo ao fogo e deixo ferver enquanto tiro o açúcar do armário. Desligo a água e adoço com uma colher de chá de açúcar mascavo. Jogo um punhado de camomila e flores no caneco e tampo, deixando infundir. Com cuidado, descanso minha xícara e pires de cerâmica azul na mesa. Segurando uma pequena peneira, passo a água do caneco para a xícara, coando. Puxo uma das cadeiras e me sento, vendo o outro assento me encarar vazio. Pela janela, fito o horizonte. Nesse momento, poderia estar a ver o mar de morros verdes que há lá fora, ou a árvore — agora pelada, sem folhas, flores ou frutos — que, cravada no solo, enfeita o topo da colina mais distante. Mas não, apenas olho, sem ver ou observar, pois não há nada no horizonte, nada à frente, nada além de mim e dias homogêneos que me perseguem com nada além de uma xícara de chá adoçado com açúcar mascavo.

Em todo lugar ou lugar nenhum, 02 de setembro de 2023

Uma chuva torrencial me desperta pela manhã, socando a janela do meu quarto, soando como um pedido de socorro de uma Terra que sofre sem uma estação bem definida. Tudo parece calamitoso em dias como esses e, perto assim da catástrofe, faz sentido pensar em algo além de uma xícara de chá?

Desço para a cozinha e aqueço a água. Noto que meu açúcar acabou, então jogo no caneco apenas a camomila e as flores, deixando infundir. Passo para a xícara azul que espera sentada sobre o pires. Em tragos pequenos, vou drenando o líquido, passando de um recipiente de cerâmica para um de carne e fluídos. Hoje há muita água, caindo aos montes, lavando o céu e fazendo trepidar as janelas de casa. Sento-me para olhar e acabo observando. Vejo agora uma chuva diferente. O céu parece despejar-se com uma raiva direcionada a mim, espancando minha vidraça, exigindo que eu tome atitude — ao invés de água quente — e saia. Me assusto por alguns segundos, mas logo meus olhos caem, indiferentes, quase a se fecharem, debochando do show que fazem os céus, pois não importa; com chá e vidros bons, eu mantenho os dias como de costume e não tenho que me preocupar em ser alguém como aquela árvore no topo da colina, sendo chacoalhada com água fria e tendo os galhos quebrados a cada vendaval.

Mas espera.

Só um momento.

Tem algo tirando a homogeneidade dos dias.

Uma figura além da árvore na colina, com traços indistinguíveis, parece me fitar… Será que está me vendo ou apenas olhando?

Em todo lugar ou lugar nenhum, 03 de setembro de 2023

Hoje não há chuva, por sorte é um dia ameno e acinzentado — o que me permite passar mais tempo na cama. No gesso branco-gelo, noto que hoje há uma mancha, uma coisa no meio do vazio, uma ideia? Não gasto tempo me perguntando sobre o que é aquela mancha, provavelmente amanhã não estará mais lá.

Desço para preparar meu chá como de costume. Infelizmente, já não tenho mais camomila e flores, ainda assim, aqueço a água no fogo e arrumo minha xícara azul sobre o pires. Derramo o líquido, sento-me e tomo enquanto olho pela janela, até que acabo vendo a figura. Noto que ela ainda está lá, agora um morro à frente. Distante demais para saber o que é, mas perto o suficiente para ter certeza que é real. Sem a chuva, não resta dúvidas de que está me fitando, e eu a fito de volta. Nos fitamos pelo tempo que dura a hora do chá.

Em todo lugar ou lugar nenhum, 04 de setembro de 2023

Nesta manhã, é o calor quem me desperta. O mormaço finalmente invadiu minha moradia. Quantos graus é preciso fazer para que uma casa de campo se aqueça? Apesar de quente, permaneço nos lençóis, encarando a mancha no meu teto que de ontem para hoje pareceu crescer, falando comigo como que lembrando das coisas que precisam ser feitas, coisas que aumentam na medida que os dias passam. Essa maldita mancha no meu branco, tomando um espaço que deveria estar vazio, com sua forma abstrata e patética, agindo como uma ideia mal formulada e incoerente que insiste em se manter presente, impregnando-se na mente.

Irritada, desço as escadas para a cozinha. Apesar das pendências me olharem por toda a parte, despejo minhas forças no chá. Por infelicidade, acabara o gás, então me contento com a água fria em minha xícara. Sento-me e levo meu olhar janela afora enquanto alterno a cerâmica na minha boca e no pires, bebericando minha água. Mais perto do que ontem, agora posso ver o corpo estranho daquilo que a cada dia se aproxima, ganhando forma. Fito-o com o cenho franzido, pois apesar do dia iluminado, a figura parece embaçada, quase a evaporar como névoa. Seu corpo, embora lembre uma figura humana, tem traços abstratos e apesar da insistência que sugere sua fronte apontada para minha janela, não vejo sentido em dar-lhe mais atenção do que este olhar fixo durante minha bebida matinal. Ela pode facilmente evaporar no dia seguinte, e então voltarei a beber, ainda que seja somente esta água.

Em todo lugar ou lugar nenhum, 05 de setembro de 2023

Acordo com o uivo dos ventos e o rugido dos trovões ainda pela madrugada. Sem conseguir dormir, acendo a luminária ao lado da cama e a primeira coisa que vejo é aquela mancha com proporções assustadoras; hoje me encara com o que eu posso jurar que é um par de olhos. Aquela nódoa ganhou vida, largou sua forma abstrata para ser isso que me olha de volta. E desse jeito figurado, até faz sentido querer ela aqui, uma ideia com coerência e forma, tomando quase todo o espaço do que antes era o vazio. Imóvel, fico observando-a até amanhecer.

Pela manhã, apenas uma garoa fina salpica o solo. Algo me prende à cama, talvez seja essa mancha. Me esforço para descer as escadas em busca do meu chá. Abro a torneira e hoje não tem água, ainda assim, vou atrás da minha xícara e do meu pires azul. Sento-me, e vejo ao longe a árvore da colina pendendo ao chão, talvez baste uma nova chuva para pôr fim a sua resiliência. Em seguida, reparo com o canto dos olhos que há algo respirando rente à janela. Nos encaramos, próximos o suficiente para não restar dúvidas de que ambos se veem. A figura, cujo corpo antes era abstrato, agora tem um rosto, e poderia até chutar um nome. Seus olhos complacentes pedem que eu o deixe entrar. Não há mais açúcar ou camomila e flores, não há nem mesmo água, seja quente ou fria, só restou minha xícara, então para que lutar?

Deixo que ele entre, giro a maçaneta e volto a me sentar. Na soleira da porta, ele estanca, observando atentamente cada canto do espaço que fora apenas meu, única e isoladamente meu até aquele instante. Seu olhar indica que não deseja tirar nada do lugar. Não quer consertar nenhuma trinca, limpar nenhum grão de poeira, tirar nenhuma teia de aranha, nem mesmo organizar pilha alguma de qualquer objeto que deixei acumular em cadeiras, balcões e diversos cantos que deram conta de receber tudo aquilo que parecia mais complexo de fazer do que um chá.

Não vi espanto em seu rosto, nem pena, nem compaixão, apenas uma estrondosa indiferença. Ao entrar, sentou-se à minha frente, e pela primeira vez em meses havia alguém compartilhando aquela cozinha, ocupando aquele assento e fazendo sair palavras da minha boca. Sem água na xícara, o tempo durou muito mais do que o convencional, e a cada frase que dizia, sua feição dura e timbre áspero iam derretendo e suavizando até se converterem em um olhar meigo e voz aveludada. Quando ele pediu para ficar, eu quase cedi. Mas reparei que ainda segurava minha xícara e pensei que no dia seguinte talvez a água voltasse e, quem sabe, até o açúcar e a camomila com flores.

Em todo lugar ou lugar nenhum, 06 de setembro de 2023

Acordo com o corpo molhado de suor. Meu impulso é xingar o astro extravagante que toma os céus, mas sei que ele não tem culpa, é uma população muito específica da Terra quem forja essa sauna quilométrica. Miro o teto e vejo que a mancha não saiu do lugar, talvez tenha dado uma leve clareada nas bordas, mas nada muito diferente de ontem. O calor faz minha cabeça pesar e eu simplesmente me deixo derreter nos lençóis. Sem descer para a cozinha, vou apenas refazendo a conversa que tive ontem com aquela figura; cada palavra soando mais coerente hoje do que no dia anterior.

“Não achas que deveria querer algo além de um chá?”

“Olha em volta, não tenho forças nem para querer.”

“Entendo.”


“Quem é você?”

“Eu sou uma ideia… a ideia de um fim.”

“E o que você quer?”

“Eu quero o que tu quiseres.”


“Se me aceitares, poderás viver a monotonia que desejas para sempre, sem ter que se preocupar com as pendências ou com a angústia de sentir que deveria querer, ainda que não consigas desejar.”

Um girar de maçaneta vindo da cozinha corta minha retrospectiva. Eu deveria me levantar e ver quem é, mas não vou, pois sei que é aquela figura. Ouço um arrastar de cadeira; ela está me esperando? Está tudo bem, somos amigos agora. Busco mexer meus braços, mas é como se a gravidade fosse minha inimiga, meu corpo só quer afundar em direção ao solo. Cada músculo que movo causa uma dor imensa e vou me arrastando em direção às escadas enquanto minha visão vai ficando turva pelas lágrimas, seguro-me no corrimão e deslizo degrau por degrau. No fim da escadaria, caio de joelhos no chão e deixo a figura me encarar até ter coragem para fazer o mesmo. Disposto na mesa a sua frente está minha xícara azul sobre o pires e ao lado deles, uma grande faca.

Me sinto cansada, cansada como se tudo que conhecesse fosse esse cansaço, como se tudo — quer olhe para trás ou para frente — fosse apenas cansaço. Rastejo até a cadeira e me sento. Olho pela janela e a árvore ainda está lá, pendente, porém firme, como alguém que sustenta uma postura de yoga. Sei que há motivos para aceitar o que esta ideiame oferece, mas olho para minha xícara e lembro de todos os dias em que ela recebera o meu chá e que, somente ele, já me bastara. Seguro a cerâmica em minhas mãos e levo até os lábios.

Talvez amanhã tenha água. Talvez só a água já me baste.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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