Daniel Knight é mestre e bacharel em Letras pela USP, autor dos romances Amarás meu nariz brilhante (2022) e Ninguém nesta família morre de amor (2021), ambos publicados pela Laranja Original. Tem dois projetos de ficção no prelo, acordados com outras casas editoriais. Traduziu autores como Proust e Conan Doyle. Faz parte da equipe fundadora da editora Tordesilhas.
1
Sem você, números guardam tão pouca relação com o tempo que devíamos medi-lo em letras.
– Aliás, que horas são, meu amor?
Ou num incontável tique-taque, tique-taque, tique-taque?
– Agora, tique pra taque no horário de Brasília… Nada prático, hein?
Relógios do mundo, calai a boca. Que horas são? G minutos para as R horas.
– E os meses, tu trata como?
Aconselho a abdicarem dos nomes, a assumir cores. Nesse calendário novo, antimatemático, as folhas se apressariam, os verões envelheceriam comigo. Meu aniversário, dia W de rosa choque. Quem não tem inspiração caça com números, afivela ao pulso doze, marcha balançando.
No calendário careta, demorou pra caramba, mas Firmina se antecipou às polícias (lá vem tu com Firmina… quando meu marido me chama do jeito como fui batizada, o calafrio que me percorre até a nuca sobe de músculo imprevisível) e desmascarou vilão procurado no território de oito distritos, vivo ou morto.
Fiquei puto, chilique de traído, de insensível. Exagerei?
– Exagerar não é bem a palavra, tu despirocou. Mas concordo que demorei, trabalheira do demo, tu aguentou um bom bocado. Graças à tecnologia e à mentira, descobri que o insuspeito doutor Jaime Anger, cardiologista de grife, torcedor inofensivo do Nacional da Lapa, viúvo com aura de viúvo, por isso charmoso apesar de curto de beleza, compartilhava epiderme e responsabilidades com o Carniceiro dos Jardins, serial killer viciado em tortura, furador de olhos, maníaco sexual, além de, claro, exímio tocador de violino nos horários de lazer e logo após cada assassinato. Se fosse vizinho, a gente reclamaria de ouvi-lo ensaiando Bartók na varanda pra comemorar mutilação? Tu me conhece.
Até então, bodas de marfim (às vezes desconfio de Deus, porque o véio que aparece na Bíblia ridicando maçãs e devastando cidades, se tivesse concebido a paixão humana, moldaria os apaixonados sem humor, e eu gargalhava que nem bebê, seu besta, toda santa vez que tu dizia “bodas de morfina”), e a gente não brigava, sequer por causa dos graciosos ou das graciosas que incluíamos no sexo e com quem curtíamos rivalidade. Discutíamos de vez em quando (casal que não discute cria escamas), mas com respeito, acariciando os cabelos um do outro enquanto cabelos tive, ambos amparados no afeto dos dois, os dois confiantes na maturidade de ambos. A sua dinâmica de detetive amadora, Firmina dos olhos de orquídea, bagunçou nossa harmonia (onde tu pôs tua parte da culpa?): chega de passear junto, solta, desentrelaça, cada um pro seu lado da cama (tu sua uma barbaridade, benza Deus), porta fechada (licença) para trocar de roupa (sorry).
Meu casamento não era mais nosso desde quando?
– Respondo em números ou em letras?
Quase acabou (se o tique-taque nos tivesse dado oportunidade para tanto, não duvide que teria acabado) por causa daquele filho duma égua. Num estalo, sem motivo traduzível fora de si, você abandonou a carreira na orquestra para rastreá-lo, fazer justiça com as próprias mãozinhas mordíveis de violoncelista. Deplorável.
E eu? Dividir casa com alguém que lograsse a façanha de passar vinte minutos seguidos sem mencionar compositores de peruca me amarguraria por si só; morar com alguém que discorria, até durante banho à luz de velas, sobre envenenamento, escalpos e pau de arara? Haja saco!
Sem contar o ciúme…
– Quantas horas de atenção pra ele, quantas pra mim? Tu me perguntava, revoltado. Se fosse revolta de ver descumprido um arranjo nosso, eu me puniria. Mas bancar o fiscal de carga horária? Aí, não. Mesmo triste com a tua postura, te entendo. Tanto que não contra-ataquei.
Jaime Anger se acoplou ao tempo da minha esposa, sem algarismo ou alfabeto que servisse de unidade de medida, manso feito ponteiro de segundos. A cada passo da investigação, mais você se afunda naquela monomania que não gira ao redor de mim: foto do sacripanta no espelho do nosso banheiro, acordei, me arrastei para lavar o rosto e, pá, dei de cara com a cabeleira de eletricidade estática do Dr. Anger, com os óculos de padre do Dr. Anger e com a cicatriz no meu queixo.
Voltei para baixo do lençol, não levanto até que me obrigue o despertador.
– Brochou de escovar os dentes?
Devia ter ido dormir no sofá da sala para sempre.
– A maioria dos teus semelhantes zarparia embora, aposto que pros braços abertos de outra, no mínimo quinze anos menos livre. O que te prendeu comigo?
Dependência emocional, não é óbvio? Medo de admitir que…
– Medo de admitir que o quê?
Deixa pra lá.
Não restava dúvida de que o Dr. Jaime Anger fosse o Carniceiro dos Jardins, criminoso foragido, pecador irredimível. No entanto, faltavam provas do tipo que alguém que controle as leis, tanto religiosas quanto jurídicas, aceitaria. Pouco depois de chegar àquela certeza, de concluir que o momento mais feliz da sua existência nada teve a ver comigo, você morreu de coração necrosado, sozinha e morena, em cima do nosso edredom.
– Sinto muito por, com essa imagem última, corromper tuas memórias de mim. Por pintar o cabelo, não me justifico pra tu.
Valorizei a hipótese de queima de arquivo (como não?) e, dentre os sonhos de vingança, me apeguei ao que suavizaria a solidão de não morrer junto.
– A honestidade soa menos romântica, né?
Soa, sim. Menos romântica, mais choraminguenta.
– Pedido de desculpa, falecida nenhuma recusa. Não te preocupa.
Nem aceita. De qualquer jeito, não estou pedindo. Além de não substituir vingança, desculpa não mudaria o resultado da autópsia: óbito de causas naturais. Uma pena… O devaneio de vingança se dispersa. Consultei, por tira-teima e de favor, um ex-aluno de piano, auxiliar de legista.
– Lamento, profe. Azar enorme, sua senhora ganhou na loteria do mal.
Meu pai explicava que, antes de se envolver com a mulher em quem me concebeu, perdera um homem a quem se referia como “o amor da minha vida”, não acreditei nessa expressão entre aspas. Sigo não acreditando. Por que caracterizar um amor, dentre todos a que sucumbi(re)mos, como o maior e/ou o mais importante se não fazemos igual com as dores de que goza(ría)mos, com os ódios que lavra(re)mos?
Endoidei ou Firmina já ditava meus significados quando viva?
– Se ditasse, teria deixado instruções que moderassem teu luto.
Larguei o cargo de diretor artístico da orquestra, me demiti da faculdade, nunca mais subo num palco ou me abrigo num púlpito. Daqui a dois anos, captur(arã)o o Carniceiro dos Jardins porque finaliz(ar)ei o trabalho investigativo da Firmina. Deu em todos os jornais do passado, do presente e do futuro. Uma juíza e dois sacerdotes condenam o réu à cadeia, não a devolver o tempo do qual me usurpou, e o amor da minha vida terminava em mim de morrer.
O que ninguém noticiou, nem meia dúzia de pessoas devem estar a par, é que, 20 de julho de dois mil e inumeroso (bah, inumeroso uma pinoia), o Dr. Jaime Anger me bateu na porta, que nem metrônomo.
– Teque?
Teque.
– Teque?
Teque.
Por que não apertou a campainha inútil? Com qual artimanha ludibriou o vigia do portão da vila? Dos dedos perecíveis, pende uma sacola de plástico; dentro da sacola, jaz um pote de sorvete chique sabor maracujá.
– Fica ótimo com café.
– E com arsênico?
– Nunca experimentei.
2
Dei um passo para trás, estendi o braço em pose de anfitrião, a visita me transferiu o sorvete e se acomodou no meio do sofá de três lugares, de frente para a lareira. Me detive na cozinha, selecionando louça adequada à ocasião, ele se incomodou com a demora, pernas inquietas a 160 batidas por minuto. Leu Freud o suficiente para temer que o gracejo sobre arsênico encobrisse um chiste obsceno, carregado de intenções hostis.
– Euclides? Precisa de ajuda?
– Sua? Não.
Que barulho irritante… A propósito, não me esqueço do Caíque. Durante o mestrado na USP, Firmina dava aula de artes numa escola pública nos confins da Zona Sul, de onde chegava em casa de cores variadas a depender do desgosto do expediente (e para onde carro e ônibus tomam uma balsa morosa que chacoalha, um inferno, ponto negativo de orientador comunista, a lonjura foi exigência do nosso querido Prof. Willy Corrêa de Oliveira; eu, por mim, ensinaria atonalismo pra gurizada do Rio Pequeno, a 40 minutos de bike). Empalideceu ao me relatar que a mãe de um aluno da segunda série, doidona de crack, surrava o menino de cinto porque ouvia engrenagem de relógio quando ele abanava a cabeça. Oxalá o teque-teque do Dr. Anger fosse um decibel mais alto (neste volume, não desestabiliza ninguém: sem escândalo), para que eu me desse álibi semelhante ao da mãe cracuda do Caíque para perder a compostura.
– No que você tanto mexe aí?
– Você não queria café?
Voltei com duas taças de sorvete e duas xícaras de espresso. O equilíbrio com que sirvo passa despercebido, nem tchum. Eu adoraria revelar que trampei de garçom em Londres quando, agonia do meu pai, reneguei o curso de direito e me escafedi com nem lembro o que na bagagem, além das partituras que careço de talento para concluir, três trocas de roupa e um bandolim. Meu pai, um asa-negra, intragável, adivinhe em quem votou nas eleições em que o Dr. Anger se lançou a vereador pelo Partido Raio Vívido. Meu padrasto colaborou na campanha, inclusive.
Freud inventou que, entre os três e os seis anos de idade, todo moleque deseja comer a mãe e abater o pai. Aham… E eu, órfão de mãe, como quem, a do Freud? O que isso significa a meu respeito? (Freudianismo me cansa a beleza. Pior que astrologia, puta que pariu.) Que fui uma criança desprovida de tesão, puro instinto parricida em forma de gordinho do cabelo de cuia?
Coloquei uma taça e um pires na mesa de centro, ao alcance do médico psicopata. Minha bunda, aconchego na poltrona da Firmina, de costas para o quadro-comédia do Foida (Paisagem chuvosa vista por cavalheiro seco, baita extravagância a grana que a gente gastou nisso, socorro).
Que aparência tomariam as religiões do século XXI se Jesus tivesse transformado água em café, não em vinho, ou multiplicado sorvete em vez de pão? O padre trocaria o cálice no altar por coador de pano, os rituais envolveriam fiéis passando café juntos.
Não. Ferver água não é lá muito católico.
– Hahaha. Você pirou.
O Dr. Anger segura no palato uma colherada do sorvete e bica um gole do espresso. A terra não treme, o céu não cospe fogo. Longe do meu campo de visão, alheias à minha curiosidade, baratas transitam (em que rumo?) ou nos vigiam (sob as ordens de quem?) ou se mancomunam (em qual idioma elaborado sem língua, transmitido sem sinais?) ou sabe Deus (que as inventou e nelas soprou Sua caridade) de que maneira baratas procedem quando barateiam.
Inveja me consome de quem cabe em frestas.
– Hummm… Experimenta. Coisa fina.
Espelhei os gestos do homem que não me roubou a esposa: palato, bicada. Cachorro nenhum assiste a esta cena, pois resisti a uma apresentação fofíssima de Power Point sobre os benefícios de um “terceiro membro da família”, me opus a comprarmos um Border Collie (que tu, não eu, tu propôs batizarmos de Willy, em homenagem ao meu orientador, pois “cachorro não faz sentido se não for comunista”) e fui destratado de pão-duro. Injustamente. Um filhote custar em torno de quatro mil graças, além de uma fortuna para mover a indústria canina (ração isso, vacina aquilo, brinquedinhos bi-bi-bi, adestradora nhem-nhem-nhem, banho quem vai dar, tosa de quanto em quanto tempo, na arca de Noé não tinha veterinário, creche toda semana, hotel quando a gente viaja), não figurava entre os principais motivos da minha relutância, juro.
– Por qual santo?
Por Cosme e Damião. Já pensou se eu tivesse caído no seu papo? Agora acolheria ao pé de mim um quadrupede respirante que não traria você de volta, mas que tampouco se oporia caso eu fingisse o contrário.
Imagina, só imagina.
O sorvete jorrou maracujá em áreas da minha alma fora de uso desde a adolescência. Rapazes começam a fugir de casa antes ou depois dos pelos no sovaco?
– Muito bom mesmo… Sabor de si bemol.
– Ah, você tem sinestesia?
– Não.
Uma colherada dele e duas minhas depois (como a gente diferenciava os silêncios que compartilhamos dos que aturamos por escassez ou abundância de assunto?), me inclinei para frente, devo ter encolhido os ombros.
– E aí? Vai falar nada?
– Vim pra ouvir, não pra falar.
– Ouvir o quê?
– O que te desafogue. Você tá todo sem caminho…
Por causa da entonação dessas frases, deixei de xingar de trouxas os pacientes que confiaram a saúde ao estetoscópio do Dr. Anger (ui que gelado, diga trinta e três, trinta e três, respire fundo, hhhh-ffff); por causa do conteúdo, sei lá que parafuso se soltou dentro do meu crânio. Parecia que ele não tinha concluído o raciocínio, que segurava atrás dos dentes uma ideia, para prolongar-lhe o gosto.
– Quem você acha que é, pra vir me oferecer alento?
– E quem você acha que eu sou, pra vetar minha amizade?
De fato… Por que esse sanguinário se absteria de me consolar? Maestro não usa o banheiro que nem maestro, não se limpa regendo os germes, então assassino não necessariamente reconforta o próximo que nem assassino. Sem contar que, de acordo com as investigações e ao contrário de nós, ele não se profissionalizou na arte que o inspira e revigora, nunca lucrou um tostão com assassinato. Ganha dinheiro com palestras, cursos e um par de consultórios em bairro grã-fino. (Desculpa interromper… Qual é a previsão do tempo para as frestas onde tu não cabe, meu amor?) Se me comparo com ele, medicina está para música assim como matança está para – o quê?
– Também perdi a mulher recentemente.
– Eu sei.
– Eu sei quem sabe e quem não sabe, mas você acha que perda é diferente de perda. Não é, meu. Você se culpa porque a ausência dela não abre ferida na pele? Eu também.
– Tenho vergonha três vezes ao dia de digerir as refeições que me obrigo a mastigar. Você?
– Eu, não. Me diz uma coisa, você pescou o nome da minha finada?
– Clódia?
– Isso, Clódia. A gente supera, jamais se acostuma. E superar não significa cornear fantasma, espero que você salte essa fase.
– Me convença a não arrebentar a sua fuça.
– Nunca te fiz mal.
Ora, ora. Cometeu lista tão extensa de crimes que se tornou sério concorrente a quebrar o recorde paulista de duzentos e poucos anos de pena de reclusão. Matou, que eu tenha computado, oitenta e nove mulheres, nenhuma perto de mim.
Nem de você. Vou vestir máscara de puritano? Ele disse que nunca me fez mal.
– O que você fez afeta todo mundo.
– Só te afeta porque a Firmina encucou comigo, você não tava nem aí.
– Essa conversa não tem o menor cabimento.
– Ô se tem… Você precisa de um parceiro em quem descontar sua fúria, eu preciso não ir pro calabouço.
– Aham. Acabou? Isso que você queria falar?
– Eu não queria falar nada. Não tô de sacanagem, vim aqui pra te ouvir.
– Para de ser louco.
– Deus me livre.
– Não vou desabafar com você.
– Não mereço nenhuma esperança?
– Em troca do quê?
– Sabe qual é o seu problema?
– Hahaha.
– Você acha que me trancafiar vai trazer a Firmina de volta. Não vai, meu. Se trouxesse, eu chispava daqui e me rendia, embrulhado pra presente. A gente não é inimigo. Entendeu? Se teimar nesse caralho de investigação… Tá, você tem o direito. Mas, pelo menos, bola uma desculpa coerente pra me perseguir, por favor.
– Ela deixou uma lista.
– Razoável… Lista de quê?
– Pra você. De perguntas. Como foi a sua infância, você arrancava o rabo dos gatos? Armas favoritas, primeiras vítimas, coisa e tal. Até você responder tudo, não me enxergo íntegro no espelho nem paro de sonhar, toda quinta-feira, que voltei pra toca vazia do meu pai, em Caconde.
– Respondo com o maior prazer. Inclusive, ainda hoje, se for do seu agrado.
– Caconde é um terror… Prometi pra mim mesmo que vou agir que nem ela planejou, te levar as perguntas no presídio. Perdão.
Perdão?! De onde tirei trato com sentimentos de estuprador? Consciência custa caro, e quem paga em dia os boletos da própria se define pelos crimes dos quais se julga mandante, pelos pecados dos quais não vamos nos redimir nem quando deles nos arrependermos e São Pedro nos franquear a entrada do Céu. Um ou outro pervertido se define pelos crimes dos quais se julga vítima, cada um com a sua anomalia.
O Carniceiro dos Jardins coçou o pulso imordível e refletiu. Ninguém lhe corte o fluxo dos pensamentos para indagar sobre o que, pois bem capaz que responda, sem mentir, que sobre o meu sorriso.
– Olha, Euclides… Essa história toda não te faz bem. Mas simpatizo com a desculpa nova, confesso. Por isso, não teimo pra que você pare de me investigar. Vambora, que prevaleça o menos exausto.
3
A visita se retira. (Será que saiu daí direto para puxar mamilo de guria no alicate?) Desconecto a campainha, sem consideração, também sem ódio, pelas aranhas que moram atrás do pulsador (a menor, com pinta de asterisco, se chama Maenduara).
Ao servir café, teci armadilha nenhuma. Não mandei esfregar a bocona cheia de material genético na xícara de quem o persigo, mandei? Algum DNA há de ter sobrado na porcelana, já que o Carniceiro dos Jardins ser um golem ou um vampiro foi a primeira hipótese afastada pela Firmina.
– Descuidos assim caíam no meu colo? Só no teu.
Descuido algum, o Dr. Anger quis, palavras dele, “demonstrar confiança”. Esclareço que os diálogos acima não reproduzem integralmente o que papagueamos, chegou a me recomendar filme do Rossellini e a camisaria do Seu Pedroso, na Pompeia. (Tu contou pra ele que, se o Seu Pedroso aposenta, tu anda pelado?) Vê se pode! A gente deve ter trombado com nosso perseguido alisando gravatas, este planeta às vezes gira de ré.
Não lavo a louça. Daqui a pouco, enfiei xícara, taça, colher e pires num saquinho coletor, para que a empregada não tenha saído amanhã de manhã corrompendo provas que o advogado de defesa alegará, não sem embasamento, serem ilícitas, visto que adquiridas sem autorização do réu. A juíza determina que, ao descartá-la, o acusado perde o direito de posse e o controle sobre a saliva, os sacerdotes ratificam a sentença. O resto do sorvete de maracujá, guardo no freezer.
– Detesto instrução que a classe oprimida não dispõe de meios pra assimilar. Não acredito que tu pediu pra Nicole manter os livros em ordem alfabética de sobrenome de autor, agora quer que ela armazene prova de um julgamento. Que sem noção que tu é. Perceba o tom de pele dos homens cis entre parêntese (Bach, Johann Sebastian – A arte da fuga; Passarini, Luciano – Pretensas feras; Rovelli, Carlo – A revolução de Anaximandro), compare com o da senhora trans que espana o pó do nosso lustre. Ai, se eu não estivesse enterrada a sete palmos, com o corpinho em decomposição… Tu me decepcionaria horrores.
Bronca não faz falta, bronca não faz falta, bronca não faz falta.
Organização define os objetos organizados. Pensa comigo… E se a biblioteca de minutos que me formam se arranjasse por outro critério que não cronologicamente? Por que isso nunca muda? Será que Deus se constrange de pedir para a empregada manusear algo que jamais poderá possuir na própria residência?
Não vejo graça nenhuma, com todo respeito, na separação que Ele urdiu entre tempo e espaço. Por exemplo, os advérbios cedo/tarde não deviam se atrelar a algum território? Tipo… Não existe cedo num milharal, porém nunca é tarde num raio de dez quilômetros em volta de uma Igreja Presbiteriana de Formosa.
A conjunção entre cedo/tarde, ao menos em frases armadas para emular o corriqueiro, sempre será “ou”. Cedo ou tarde tudo se expia, tanto o bem quanto o mal, cedo ou tarde se pagam. Para fazer jus ao caráter indivisível do tempo, no entanto, a conjunção ideal me parece “e”, cedo e tarde.
Dia 22 de julho de dois mil e inexaurível, daqui dois anos no tarde e depois de amanhã no cedo (o tempo se distende, que nem tendão de cotovelo, mas tu não é ortopedista para religar fibras partidas, tira o cavalinho da sombra), o Dr. Jaime Anger se fará linchar pelos companheiros de cárcere; segundo a perícia, por oito minutos e quarenta e sete segundos a mais que o necessário para acabar com a encarnação dele.
– Ódio gera despropósito. Sodomizarem meu cadáver com garrafa PET? Que falta do que fazer.
As redes sociais entraram em êxtase, a mídia (tanto os veículos estatais quanto os concedidos às famílias dos fazendeiros mais influentes?) ostentou a novidade. Festa no programa do Klaus, feministas e pastores evangélicos soltando confete, o vídeo do linchamento viralizou. Pelos botecos, nenhum cidadão de bem, nem os que frequentam cela de parente no xilindró, contesta a execução.
– Certo, não tá, mas vou chorar por um vagabundo daqueles? Eu, hein?
Enquanto nenhum dos golpes que deformaram o Dr. Anger me atingiu, eu dormia acompanhado, sem o menor preparo para receber a notícia. Por que sujeitos e contra-sujeitos de carne são incomunicáveis durante o não se tocarem?
Lembra da dependência emocional? Então… Arrumei uma namorada pós-você. Te incomoda?
– Calma… Quem? Onde tu encontrou? Por quais critérios tu escolheu? Não volta praquela palhaçada de antes de me conhecer.
Marcela, natural de Rio Claro, publicitária de restaurante, cursou ESPM, ainda não decidi se mimada ou mimosa, aferrada à conduta de solteira durante relacionamentos. Encontrei num aplicativo de namoro, escolhi por critérios que você desaprova. Dorme aqui quarta, sexta e sábado, do meu lado da cama. Vagava insone pela internet quando leu no Correio Paulistano e não me cutucou: ei, acorda, meu bem:
Carniceiro dos Jardins toma do próprio veneno
Que cafonice jornalística. Para escrever o obituário do Dr. Anger custava (boa-fé, pra que te quero?) convidarem um criminalista ou um dos incontáveis serial killers que começaram a carreira inspirados pela obra do mestre?
Se, em vez da Marcela dos olhos cor de saudade, você que…
– Mas bah, como que tu pode pensar em mim com um mulherão desse de conchinha? E essa juba grisalha dela antes da hora? Que charme! Não terminem por causa de mim.
Relaxa, terminamos por causa de mim. Se Marcela não tivesse o defeito de assistir TV no café da manhã, ainda estaríamos juntos? Cultivo essa ilusão. Não disfarcei o abalo, supostamente lambi o beiço de cima, quando a repórter de plantão atrapalhou a fofoca de um programa de culinária para informar que a Secretaria de Penitências e Sacrifícios do Estado de São Paulo confirma, em nota oficial, o falecimento de Jaime Augusto de Alcântara Anger, vulgo Carniceiro dos Jardins. Não espalharam detalhes, nem os sórdidos nem os amenos, e nenhum espectador que goze de saúde psiquiátrica deveria se importar, já vai tarde.
Compareci ao velório – nem a família! Marcela garrou nojo de mim. Cruzes, onde se viu murmurar o Pai nosso para embalar o repouso daquele feminicida? Além de não ser você, Marcela não perdoa quem pratica perversidade. Se o Código Penal se submetesse às vontades dela, misericórdia: castração química para macho que pula a cerca, fuzilamento em praça pública para quem maltrata bicho.
Descanse(mos) em paz, doutor Anger.
Amém. Por que não me comove(u) a viuvez que nos irmana(va)? Por que não ced(ere)i aos pedidos para que eu o deix(ass)e solto? Ah, Dr. Anger… Acertou ao supor que não alimento rancor algum contra sua tenebrosa pessoa, errou (nada grave, atire das mãozinhas mordíveis de Jesus a primeira pedra quem nunca falou bosta) ao deduzir que a resolução do caso não traria a Firmina de volta do além-mundo.
E trouxe mesmo?
4
Cadê você? Impossível buscar na rodoviária (que tal em Guarulhos ou na catraca da Vila Olímpia?) quem viaja entre dimensões. Perdi o fio da meada… Agora acontece o quê? Tanto faz, a ordem dos fato(re)s não altera o produto, posso sair da barriga da minha deslembrada mãe ou para lá retornar, padecer do primeiro dia de escola ou dos sintomas iniciais de demência senil, tanto faz.
Bate(ra)m na porta. Não aguento mais esse barulho de metrônomo.
A campainha estragou de propósito? Que sacanagem. E você, voltou ou não voltou?
– Claro que sim. Tu viu o estado em que te deixei?
Estendo os braços em pose de marido, você me abraça, o cachorro que não compramos por rabugice nos pastoreia até a cozinha, puro instinto canino, que confundimos, ambos, com apego de filho.
– Vem, Willy, vem.
Alcanço no freezer o resto do sorvete de maracujá que o Carniceiro trouxe, este bem pode ser o fim de mim. Se não for, doravante me viro como?
– Hummm… Ele tem razão, coisa fina isso aqui.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque.
– Aliás, que dia é hoje, meu amor?
M de azul turquesa, por quê?
Fotografia: Forte de Santa Rita – Autoria não identificada (Coleção Sebastião Lacerda/Acervo Instituto Moreira Salles)