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Para Sempre Adeus

por Gabriel Cruz Lima
ilustração de georgia ayrosa para texto de gabriel cruz lima. folhetim na ordem do dia, capítulo 9

Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, está de volta no coração dos emocionados e a um passo de um título relevante.


Quando a gente esfrega o dedo por uma fita do Senhor do Bonfim, se nota alguma coisa áspera das letras impressas. É como se dessa linha tênue, fechada na palma da mão, fosse possível adivinhar a mensagem por um código conhecido apenas pelo tato, nunca pelos olhos. Eu não sei o que eu estou fazendo.

Ela é vermelha, sim. Porque vermelho, como disse quem me queria bem, ajuda a corar nossos desejos. Espero que ajude no enquadro também, caso dê alguma coisa. Ainda é tempo de voltar?

Nunca é possível retornar, nem sair. Daí me pego amarrando essa fita como tentativa também de permanecer mais um instante no quarto, atando sempre as pontas, permanecendo imóvel e vacilante: Não continuo brasileiro; digo para a mala aberta.

Sempre é possível retornar e sair. Vou para Madrid, porque, além de necessário, é, sobretudo, mandatório. Não dá para ficar parado aqui assim não, justifico para ela. Cansei de ser uma ilustração do seu desejo.

Estou de partida e, dessa vez, para sempre. Adoto o tom elegíaco de propósito. Conforme as palavras se derramam, a saudade ganha em substância anímica e me convence por antecipação do arrependimento. Juro promessas eternas com a esperança de que nenhuma se realize. E mesmo assim quero as moças com lenços ao vento e muita chuva, sinal de que o tempo chora minha ausência. De que ela, ao bater a porta na minha cara, queria dizer, na verdade, te levo ao aeroporto para repisar ainda mais o adeus. Palavra bonita e peremptória: adeus. 

E se chovesse? No caso, esse táxi ou o trem de pouso derraparia em alguma outra tragédia esquecível e mais uma vez a gente ficaria triste, tomaria um sorvete, tomaria outro sorvete e veria as aves cantando em uma palmeira. Entretanto, mesmo parado no céu, eu não esqueceria não. Viajo para conhecer mais a arte e os quadros. Eu queria transformar essas coisas em algo além, para que, no fim, eu existisse como parte da retina, da sua, da dela, da nossa. 

O taxista proíbe fumar dentro do carro, mas desobedeço, porque eu sou mal e também porque eu quero a sensação de me sentir um exilado antes de levantar voo. Imagino aqueles homens de jaqueta e óculos, todos muito artistas, obrigados a largar a pátria. Eu vou junto e levo meu maço para não filar o dos outros. Digo que não divido nada com o Caetano Veloso, cada um no seu canto, papo de água e óleo, nós dois. Ele ri. Vá estacionar um carro no Leblon, eu digo. Digo também para o motorista que estou atrasado, corra por favor, muito pela certeza de que todos os artistas vivem sempre correndo. Buzina não faz carro voar. Nem motorista ruim, eu emendo. Ele estaciona o carro em algum Leblon e pede para eu descer. Só não volto para casa, porque a piada conduz a cabeça até o guichê: artista é flagrado estacionando o carro no Leblon II. Também pelo motivo de não dar o braço a torcer, de que adianta todo o drama da viagem se, no fim, eu não ficaria segurando aquela mesma fitinha do Senhor do Bonfim.O gosto de levar junto o presente do adeus é o de me situar em um tempo estranho, em que a partida, se foi definitiva, é sempre tensionada por esse vínculo de afeto.

Sei lá se a Lídia gosta mesmo de mim. Deve mesmo me amar de um jeito nostálgico, em que, por ela saber da minha incapacidade de me livrar de um presente dado, eu acabaria também preso nesse mesmo afeto, sempre retornando, sem nunca ter saído dos bracinhos dela. 

O problema é: onde eu vou, eu também estou. Aeroporto de Madrid via pacote na agência de turismo e depois a gente estica a viagem, fica por lá, viro estudante, gênio, poeta e bandido. Lá sou amigo do rei. A ilegalidade me ajuda a criar a aura de artista.

Peço um cafézinho, cafecito, como acho que seja em euros espanhóis, ou cofee, como pronuncio em dialeto global. Levo a xícara à boca pensando a cada gole que, logo após despejar as malas no cafofo do garoto malhado da pensão, devo passar no Museu do Prado, como se ali estivesse meu verdadeiro visto de estudante.

Ou de turista. Melhor ainda, de turista. Porque não consigo me decidir se estou na arte de verdade ou a passeio. As duas existem de modo a não existir nenhuma de fato. Imagine que, na verdade, eu fui apenas viajar, porque estava cansado do trabalho e do término. Nada mais. Nada menos. Sem essa de querer conhecer arte. Comprei um roteirnho parcelado com um dinheiro alheio para poder entender a minha perspectiva diante da obra de arte, ver uns quadros legais no dia da chegada, livre de city tour, conhecer os monumentos mais fotografados só amanhã, hoje é meu o dia. Digo um hi ao garoto da pensão e pego minhas chaves, já certo de que é só tomar um banho e zarpar. Meu pulso tem um colar de miçangas e também a fita do Senhor do Bonfim.

Pago aqueles euros de entrada com a mesada de uma vida inteira.O que eu quero é o efeito. Ao passar o detector de metais do museu, se me perguntarem, dessa vez, eu já sou o estudante de mestrado em Ponto de Vista Estético na Universidade de Madri indo ver a seção da nova mostra sobre arte pós-colonial: Na ordem do dia. Sequência de quadros mais ou menos confusa sobre a América Latina e sua contínua possibilidade de ser violenta. Como estou de boina, que é a coisa mais avant la lettre que eu conheço, também me permito ser um dos artistas, por que não, dessa exposição. Assim, percorrendo aquelas Meninas esquisitas do Velázquez, tem um quadro meu também. Sem autógrafos, por favor.

Todos os olhares convergem ao ponto em que vou ver arte brasileira em museu gringo. 

De todos os quadros, um borrão verde feito por uma velha demente e um quadro de crianças libidinos me encantam por alguns minutos, muito bons eu diria. No entanto, o que mais me detém se chama o Para Sempre Adeus.

Nesse quadro o pintor mescla referências sobre o tema do exílio, em que o desejo de retorno se debate com uma paisagem inóspita. Um sabiá do peito verde e uma palmeira só folhas compõe o lado esquerdo superior da tela. Chove abundantemente pelo quadro. Ao centro, um homem segura uma fita vermelha agarrada às asas de um avião imenso que, por sua vez, estaria em uma rota de colisão com o pássaro. 

O elemento pictórico preponderante é sua composição de cores básicas. A matiz dada ao vermelho, presente em uma porção significativa da obra, possui um tom prosaico, contrastando com o amarelo da cauda do avião. O verde da folhagem e da penugem seduzem os olhos do espectador. De acordo com Akutsu (2012, p. 84), o uso dessa coloração na fauna e flora, combinada à posição do personagem no quadro, poderia representar a idílica volta à pátria.

Porém, a ameaça da modernidade tardia afeta a composição da tela. A sugestão de que a turbina do avião pode e irá obliterar a penugem e folhagem é um indicativo de como o processo de globalização dirime a especificidade nacional (REVOREDO, 1992). 

A pele do homem, seguindo o debate sobre a crítica do processo civilizatório, é branca e, em uma espécie de “sorriso lacrimoso” combina “sentimentos contrastantes”, como visto na tese de doutoramento pela Universidad de Madrid “La izquierda hasta la vista: bromas de una catástrofe neoliberal”,do professor titular J. Revoredo. Ainda segundo o autor, o “triste gozo no rosto” remete à gramática das belas artes românticas do final do século XIX, cunhada “sob a égide da branquitude”, e coloca a paisagem à luz do debate “pós-colonial sobre a formação do Estado nacional”.

A forma pueril, quase infantil, do avião acima da cabeça indica voo suspenso, ascensão aterrada pela mão empinando uma fita vermelha. O homem segura firme o laço por todo o instante. Segundo Cavalcante e Vilas Boas (2003), o avião na cúspide chuvosa, rijo como uma pipa esticada, além da alusão fálica à violência constitutiva da nação, ilustra o esfacelamento de um país cindido entre o urbano e o rural, cujo projeto nacional nunca foi “plenamente realizado”.

O fiapo do Senhor do Bonfim é o esteio de um quadro sem retornos nem saídas, nostálgico, e exilado até onde me vejo.


Da redação: este é o oitavo de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. Daremos uma pausa para o autor respirar um pouco. O folhetim volta no mês de julho, no mês lugar (Aboio) e na mesma hora.

As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.

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