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O homem vazio, por Matheus Santos

por Matheus Santos
Arte: A guitar player seated in an interior, de Pietro Paolini.

Matheus Santos reside em Manaus. É graduado em Letras – Língua e Literatura Portuguesa (UFAM). É professor de língua portuguesa, escreve contos e histórias em quadrinhos.


“This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.”

T. S. Elliot

Muito mais do que centavos foi o que o ex-boxeador prometeu a Simônides, pagamento gordo para um serviço que exigiria um pouco mais de preparo, algo justo, dadas as circunstâncias. Levaria algum tempo, porém Simônides deveria compor uma música para tocar na festa particular de aniversário de seu mecenas, por assim dizer. Algumas exigências foram feitas, nada de violinos, cellos ou algo do tipo, o ex-boxeador queria uma composição para guitarra elétrica, algo agressivo e barulhento.

Seria algo que só existiria ali e naquele momento, sem registros, sem gravações, um presente de aniversário tão efêmero quanto a memória dos que se fizessem presentes. Seria tarefa fácil de executar se o ex-boxeador não fosse um tremendo imbecil, exasperado e agoniado. O dia da entrevista foi o pior. 

– Seu currículo não é bom! – Disse o ex-boxeador. 

– … pra que me chamou então? – Pensou Simônides. 

– Consta aqui alguma experiência, mas isso não é o bastante, você pesquisou sobre mim? 

– Sim… 

O mecenas ficou esperando com cara de quem queria ter o ego amaciado, Simônides entendeu. 

– O senhor ganhou três grandes prêmios no último ano e gerencia uma das maiores empresas do segmento educativo do País. 

Tudo isso era verdade, com exceção da maior parte. O ex-boxeador tinha, de fato, três prêmios, mas foram comprados, tinha também uma das maiores empresas do segmento educativo do país, que, na verdade, nada mais era que uma mangueira para alguns velhos senhores encharcarem montanhas e montanhas de dinheiro lá e tirarem as verdinhas limpinhas. 

– Então você fez alguma coisa antes dessa entrevista – afirmou com desdém o ex boxeador. 

– …. 

– Você sabe lidar com prazos? 

– Sei sim, sempre trabalhei com prazos nas minhas encomendas, alguns desses prazos costumam ser bem apertados, coisa que estou acostumado. 

– Você tem filhos? 

– Não. 

Se Simônides tivesse, diria que não tinha, a fama que corria era que o ex-boxeador era invasivo, que tinha certo prazer em humilhar seus funcionários e que gostava de pressioná-los à beira da exaustão psicológica. Algum psicanalista disse ao ex-boxeador, no passado, que ele agia dessa maneira com os outros como uma forma de compensar o pênis extremamente pequeno que tinha. Bom, pelo menos foi isso que o psicanalista queria dizer e não disse com medo de ser demitido. O que ele disse foi: 

– Senhor Skopas, talvez exista em seu passado um momento traumático em que o senhor foi colocado em posição subserviente e que não conseguiu superar até aqui, por isso tenta infligir aos outros a mesma dor que sentiu naquele momento. 

A resposta do lutador a isso foi totalmente equilibrada: 

– Vai se foder, magrelo fodido! 

Depois disso, Skopas demitiu o psicanalista, não antes de quebrar três dentes do coitado, de forma que qualquer reunião com ele poderia virar um mise en scène sanguinolento, tal qual um faroeste italiano. A verdade é que Skopas gostava de bancar a pose de Clint Eastwood. Simônides sabia de tudo isso, pois seus serviços não eram baratos e ele não era qualquer compositor, portanto sempre pesquisava bem sobre seus empregadores, molhava uma mão aqui e ali… 

– Eu quero que você me surpreenda no dia, quero que todos fiquem abismados com o peso e agressividade, quero que todos escutem sua guitarra e lembrem de mim.

– Entendo, senhor Skopas, não se preocupe, eu já compus para príncipes de países cujo IDH é o dobro do nosso país… 

– Você é baitola? 

– Quê? Não. 

– Pra que tá falando de IHV então, porra? 

– O certo seria HIV, senhor, e eu não estava falando disso. 

– Você se acha muito esperto, né, compositor? Perguntou Skopas colocando um palito de dentes na boca. 

– Nada disso – disse Simônides. 

De fato, Simônides não se achava muito esperto, porém ele se achava pelo menos inteligente o bastante para compor uma música que agradasse o paladar musical infantil do símio que estava à sua frente. 

– Então para de tá bancando o sabichão! – Afirmou o ex-boxeador, num tom que soava mais ameaça do que qualquer outra coisa. 

– Peço desculpas por isso, senhor. O meu trabalho é fazer exatamente aquilo que o senhor solicitar. 

Skopas gargalhou ruidosamente e disse: 

– Pelo que estou vendo, você é fraco, tem um emocional frágil. 

Por algum motivo Skopas parecia acreditar que os seres masculinos da espécie humana estavam divididos em dois grandes grupos, e que se estruturavam de forma similar à organização hierárquica utilizada por lobos. Passou alguns minutos explicando essa teoria da masculinidade para Simônides e, ao fim, assegurou com agressividade que o músico pertencia ao grupo dos submissos. Simônides acenou e concordou durante todo o resto da entrevista. 

O músico estava certo, realmente não fora difícil compor aquela música, uma bateria de metal progressivo, tempos rápidos e cavalgantes seguidos de uma guitarra agressiva e repetitiva. Porém algo aconteceu: um lampejo de criatividade possuiu Simônides, e a sua composição tomou um rumo totalmente inesperado. O que surgiu de seus dedos foi uma melódica guitarra ao estilo oriental, midtemp, com um conjunto de bends semitonados que acrescentavam à melodia um sabor delicioso. A música ficou perfeita, belíssima, mais primorosa do que Simônides havia imaginado que ficaria. 

O compositor resolveu nomear a música como “undertown”. Ele a compôs de improviso e a guardou na memória, e isto era, provavelmente, a principal ferramenta de Simônides, sua principal fonte de inspiração e de conhecimento, seu ponto forte, sua memória. Enquanto ensaiava a nova música, ele se lembrou de Skopas e a imagem daquele homem o causou repulsa, quase como se a música que saísse de seus dedos pelo braço da guitarra execrasse a imagem do homenageado. 

Simônides não havia mentido quando disse que vendeu composições para príncipes, e nem naquelas situações havia se sentido assim, incomodado. Afinal, se existem pessoas que se banham em sangue inocente mais do que reis, rainhas e príncipes, Simônides desconhecia. Mas nem naquelas situações a repulsa se fez presente, o que o levou a indagar qual seria o motivo disso. 

Sem resposta, continuou a aprimorar sua música, e o dia do aniversário chegou. Simônides já estava no local correto quando tudo começou. Skopas havia bebido demais, como era de se esperar, e além de agressivo, começou a destratar todos os convidados…

– Gisele, você é uma puta do caralho, todo mundo sabe que você já deu pra metade dessa festa aqui e que o seu marido que banca o luxo é um corninho feliz. 

– Cala a boca, mentiroso, filho da puta! – Gritou Gisele. 

– Para com isso, irmão! Não tem motivo pra fazer isso de novo. 

Foi o que disse um grande amigo de Skopas, antes de cair nocauteado no chão. 

– Tão vendo isso? Vocês acham que mandam em mim, eu montei tudo isso aqui, eu banquei toda essa festa, e só o que vocês fazem é me julgar com esses olhos de gazelas fodidas! Todo mundo aqui me deve algo, todo mundo cresceu por causa de mim! 

Todos em volta estavam horrorizados. Havia somente doze pessoas no local. Alguns já esperavam algo assim, porém a maioria não. 

– Eu paguei esse músico pra fazer uma música para mim, e ninguém vai sair daqui até ouvir a minha música, ninguém vai sair! – Gritou Skopas, tirando um revólver calibre 38 do bolso. Houve gritos, seguidos de silêncio, os olhos assustados se voltaram para Simônides com sua guitarra elétrica no centro do salão de festas. 

– Vai lá, cara, toca a música dele – disse um dos assustados. 

– Sim, toca aí, depois fica tudo numa boa – pediu Gisele. 

Skopas ficava mais vermelho a cada segundo. 

– O próximo merdinha que abrir a boca vai levar um tiro no meio dos dentes, só quem fala sou eu! 

Depois dessa ameaça, Skopas se aproximou de Simônides e disse: 

– Eu quero ouvir a minha música agora, ou você toca ou morre! 

O músico ligou a caixa de som, a estática metálica da guitarra preencheu o ambiente, estava pronto para tocar, quando foi pego de sobressalto pela própria consciência. Não podia tocar aquela música para o bicho que estava na sua frente, ele não merecia. A música era bela demais para ser apreciada por aquelas pessoas, suas mentes não continham a capacidade interpretativa necessária para aquela peça cuidadosamente composta. 

E ele não poderia dedicar uma música digna do carro de Apolo (como diria um grande escritor) para um indivíduo totalmente imbecilizado, arrogante e agressivo como Skopas, mas parece que ele não tinha muita escolha, teria que tocar ou morreria. 

– Vamos lá! Toque! 

– Eu não posso… 

– Como é? 

– EU NÃO VOU TOCAR! 

– Você tá ficando doido? Eu vou estourar tua cabeça aqui na frente de todo mundo e depois vou pagar cada um aqui pra fechar o bico, porque aqui não existe ninguém que não tenha o rabo preso com a minha família. 

– Você é um merda, Skopas, totalmente desprezível! Você simplesmente não merece. 

Skopas levantou a arma e apontou para a cabeça de Simônides, mirou com calma e cuidado, apertou o gatilho. 

A arma não disparou, ele apertou novamente e, mais uma vez, o som seco do gatilho ressoou, mas não foi seguido de um bang. Skopas ficou descrente. 

– Mas que merda… 

Simônides, mais rápido do que se poderia imaginar ou prever, bateu com sua guitarra na cabeça do ex-boxeador, que caiu no chão atordoado. Então, Simônides subiu em cima dele e desferiu uma série de golpes com o corpo da guitarra elétrica. Um, dois, três…. múltiplos golpes no rosto de Skopas. Sangue jorrava em silêncio. Ou Simônides não ouvia nenhum barulho. Os golpes eram desferidos e amaciados pela plateia, calada. Simônides continuou ferozmente até sobrar apenas uma massa avermelhada de carne, osso e sangue no chão, que antes era a face de Skopas. 

Alguns dias depois, quando interrogado pelo delegado o motivo pelo qual assassinou o anfitrião da festa (brutalmente e sem motivo algum, segundo todos os convidados presentes), Simônides resignou-se a soltar um gemido quase inaudível e respondeu: 

– Não lembro.


Arte: A guitar player seated in an interior, de Pietro Paolini.

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