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Recomeços e raízes

por Mel Gomes
Desenho de Ariyoshi Kondo ilustra o conto "Recomeços e raízes" de Mel Gomes.

Mel Gomes é assistente social de formação e escritor por natureza ou constituição. Escreve desde 2017, já tem um livro publicado e outro projeto no prelo.


Força é mudares de vida
— Rilke

Que a necessidade de recomeçar é tão forte que precisa as muitas principiar pelas raízes, disso não duvidamos; que recomeços há que são como um surgir novamente, disso não duvidamos.

Mas quem intui? Não muitos, quem ama, somente.

Com uma só visão Maria Carminha teve tudo o que precisava, as palavras e o que fazer; que doesse, doeria; que lágrimas fossem derramadas, que fossem; mas que há recomeços urgentes, disso não duvidamos.

Olhou apenas uma vez para os piolhos na cabeça da menina para saber que precisava raspar todo o cabelo. E a menina coçava com os seus dedinhos e unhinhas, até arrancar também cabelos e escamas da sua pele, mas era um piolho desgraçado que não dava paz. E de piolho em piolho perde-se a guerra.

Carminha não disse muita coisa, cozinhava suas ideias; era melhor que seu marido não soubesse, os homens temem os recomeços ousados. Mas também ela temia nas batidas de seu coração; e, em seguida, com novas batidas, recobrava uma coragem boba. Das melhores.

Rasparia o cabelo de sua filha, não importa se os meninos do Barreiro fossem rir dela; o riso nem sempre é amigo, mas é preciso ser solícito para sua própria força. Seja riso ou não-riso. A menina não entenderia, talvez também temesse, mas confiava na mãe Carminha, e ela confiava em seus santos.

Havia muito com o que se preocupar na vida, problemas famintos, outros violentos, o barraco que caía; mas olhar de frente para o um recomeço pede muito de nós mesmo, ela não duvidava. Mesmo nos seus vinte e seis anos, precisou recomeçar muitas vezes, necessitando inventar lugares para ser feliz, acreditando neles e os perseguindo. A menina aprenderia.

Mas a menina, antes, era tão triste. Piolhenta, a coceira era uma agonia sem fim. Carminha olhava. Colocava a mão entre o cabelo crespo dela, lá via a marcha dos soldadinhos malditos gordinhos de sangue. Gostava de matar eles nas unhas, fazia plac, ficava a mancha de sangue; entendia uma vingança, mas o problema não se remediava.

Choveu uma noite e ela lembrou “da tristeza da menina”. Choveu tanto que a lama entrava pelas frestas do barraco deles, alguns outros foram arrastados na favela do Barreiro do Vasco. E essa foi uma das chuvas mais lembradas no ano de 1944. E pensou mais tarde que, se a chuva era a tristeza dela, ela sentia muito. A menina não podia.

Vendo a favela arrasada, sua própria casa quase ruindo, o homem tirando baldes de lama de lá, ela disse que todos aprenderiam como recomeçar. A menina, então, devia.

No primeiro dia de sol, tempo não importava mais do que a coceira, esquecido o turvo no coração das chuvas, estavam elas, mãe e filha, sentadas dentro de casa, invocando suas forças como uma reza calada. A menina não entendia, mas ela explicou, por mais que gostasse de seu cabelinho, havia algo a ser feito por amor. Lilia.

Com a tesoura ela começou a cortar de mecha em mecha, aqueles olhinhos apenas observavam com a mão na boca, não disse muita coisa, mas não se sentia tão confusa. O cabelo foi diminuindo o volume tanto quanto o coração das duas se apertavam, mas sempre repetindo para si mesma que as suas necessidades. É preciso, é preciso, disso não duvidamos.

Necessidade, porém, não dá luz à coragem. Coragem nasce de si mesma. Coração que descobre como se age. E tal coisa era raspar a cabeça da menina. Depois, os piolhos seriam arrancados com todas as forças que tivessem, não aproveitariam de nenhum cacho para se esconder, a luta seria findada, pois sabia que venceria.

A menina não se coçaria, o cabelo cresceria novamente, mas, antes, o recomeço desde as raízes.

Ele chegou, logo disse, “Precisava deixar ela careca?”

A menina olhava. Carminha não o olhou.

“Sim… precisava”, pois sabia que não deveria ter medo do que era preciso, por mais que fosse atiçar os inimigos.

“Mas os muleque vão rir.”

“Também esses risinhos a gente tem que aguentar. Ela também.”

E nada mais disseram, estiveram os três sentados na casa depois que todo o cabelo da menina foi desmanchado. As quatro mãos arrancaram todos os piolhos que conseguiram enxergar na luz da vela, até a hora mais escura. E Lilia dormiu sem se coçar depois de muitos dias, não se entristeceria, não choveria.

Que voltasse a pegar piolho de novo com os piolhentos do Barreiro, disso não duvidavam, mas enfrentaria aqueles satanases com mais força.

Lilia carequinha tinha a sua beleza, para eles mais o amor vivecia. Não podia ser diferente. Sim, os moleques riram da menina, ela chorava. mas não era uma tristeza que não fosse vencida na mesma hora. Sua fala arrastada e palavras balbuciadas, tinha uma dificuldade na pronúncia das palavras, podem ter feito com que ela falasse pouco e chorasse mais, porém escondida, sem deixar de repetir uma vez ou outra que sua cabeça era como um fosforo queimado, que era o que ela ouvia dos outros meninos; muitos, inclusive, de cabaça raspada como ela.

Mas seu cabelo cresceu, e para ela parecia uma mágica; e um poder especial dos crescidos de saberem que o cabelo cresceria.

No coração das crianças, a arquitetura funciona para deixar as coisas tristes para trás, e ela passou a acreditar na felicidade de seus dias com o cabelo que crescia, assim como o mato da terra revolvida, assim como a nova folhagem de uma árvore queimada, mas que não deixou suas raízes morrerem.

É essa uma pequena alegria que Deus, Carminha acreditava, rezando sincreticamente o seu terço. Havia armado a arapuca no coração da menina. Tanto quanto os outros, ela recomeçava um pouco mais do que todos.

A força de recomeçar sempre é mais honesta, até para Lilia de cabelo raspado. E das raízes do mesmo cabelo, novamente ele cresce e é mais amado, porque há recomeços que nos arrasam desde as raízes, – disso não duvidamos.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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