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Seis microcontos sobre a morte, por Carina Bacelar

por Carina Bacelar
Arte: A Rainbow, with Cattle, de J. M. W. Turner.

Carina Bacelar nasceu no Rio de Janeiro. Redatora e jornalista, é formada em Comunicação Social pela PUC-Rio. Lançou de forma independente no final de 2021 seu primeiro livro de ficção, As despedidas (reeditado em 2022 pela Marisco Edições). É aluna do Curso Livre de Preparação de Escritores (CLIPE), da Casa das Rosas.


Um:

A primeira lembrança do rosto do tio Carlos, ainda que o rosto do tio Carlos me fosse um rosto impossível. O porta-retratos prateado com linhas paralelas na moldura, entre as imagens de santo da vó. O tio Carlos corpulento dentro da farda de gala, olhos torcidos de sol, mas o susto veio mesmo na cor nos cabelos da vó, sorrindo abraçada a ele. A cor nos cabelos da vó naqueles sete anos parecia tão impossível como o tio Carlos. Depois do que aconteceu, minha avó talvez tenha desistido de mentir. Ou aprendido a gostar do tempo, já que o tempo é a única coisa capaz de desmatar, aos pouquinhos, uma morte. E o tempo também nos leva pra mais perto da morte, fazendo aos poucos miniaturas de todas as mortes alheias.

Outro dia mesmo um carinha que conheci num aplicativo disse Passei o dia indo de moto até Resende. No que eu respondi meio bêbada Olha só! Meu tio morreu andando de moto em Resende. 

Ele nunca mais falou comigo, mas me devolveu essa lembrança do tio Carlos da cor dos sete anos, e aí lembrei também que estou ficando grisalha, e quem sabe não é porque mato meus filhos toda vez que preciso. 

Dois: 

Quando meu pai conheceu minha mãe, o irmão dela tinha morrido anos antes. E dali a outros tantos anos – se apaixonaram, casaram, tiveram filhos – meu pai também perdeu a irmã. Penso que ele se deslumbrou com alguma pisadura de tristeza nos olhos dela, por alguma cicatriz viçosa e brilhante que cobre toda a pele ou a voz ou o cheiro da pessoa que perde um irmão, porque o corpo dele já havia entendido as coisas antes que coisas fossem, porque os corpos conhecem todas as possibilidades de desgraças de fábrica, e a isso demos o nome intuição. Os corpos já sabem seu futuro, e por isso deixam que ele se intrometa no presente, como uma caçula que se enfia nas brincadeiras elaboradas do irmão maior. Sem nem saber falar, sem saber brincar daquelas brincadeiras. Deixando o irmão maior mobilizado com o distúrbio de sua presença. E só. 

Três: 

Sonhei com o carro que passou por cima do meu pé naquele dia. No sonho, ele não atropelava só o meu pé, mas me acertava em cheio, em alta velocidade, meu corpo voava contra o capô e caía estatelado no chão, feito fruta fugindo das amarras das árvores que se espatifa e já vai botando o sumo pra jogo no asfalto e esse sumo meleca os pés de alguém e uma traquinagem da fruta causa um incômodo grande a quem está indo trabalhar. Pois lembro da certeza de morrer muito em breve, das estrelinhas brilhando na vista e apagando o mundo como uma noite bonita. Quando o mundo enfim acabou, assisti dentro dos meus olhos a um filme de cinco minutos com a minha vida de cabo a rabo. E ele era muito detalhado e esplendoroso, mesmo tendo só cinco minutos. Enquanto morria, sabia que aquele filme era fruto de alguma reação química do meu cérebro se espatifando e, ao mesmo tempo, me acomodando em uma cadeira aveludada pra esperar a morte.

Quando acordei, era dia e eu ainda tinha uma vida pela frente. Retive os detalhes do sonho, mas não sobrou memória nenhuma daquele filme. Se pudesse, trocaria todos os minutos adiante por aqueles cinco. Desde então, gasto dias e noites refazendo o filme, e ele parece que nunca vai chegar a ser o que de fato foi. 

Quatro:

Eu acho lindo seu rosto de criança me contando amenidades. Explicando como anda tudo difícil no trabalho, do calote que você levou, da diabetes da sua mãe. Lindo como você tem a capacidade de olhar pro meu rosto sem lembrar dele te encarando mudo cansado querente enquanto chupava o seu pau. Por anos. Se somarmos o tempo só de boquete deve dar mais de dia. Se eu abrir todos os botões da minha blusa agora, você manda fechar? Lembra do dia que você me perguntou se eu iria ao seu enterro e eu disse que ia pensar? A verdade é que não, eu não iria ao seu enterro, grandes chances de eu estar morta junto com você ou muito medicada pra sair da horizontal. Essa amizade que se segue às fodas é o contrário disso: esquecer as catástrofes, enterrar logo os corpos que elas deixaram pelo caminho. Morar em uma cidade até bem pouco arrasada, pintando as paredes das casas com um azul-esquecimento. Em três demãos, de preferência. 

Cinco:

Quando bebo água gelada, tenho ainda mais medo de morrer sem ser levada a sério. 

Seis: 

Pensando melhor, beber água gelada me dá medo. E não ser levada a sério me dá medo também. Morrer, por si só, nem tanto.


Arte: A Rainbow, with Cattle, de J. M. W. Turner.

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