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Two Flamingos

por Gabriela Ripper Naigeborin
Foto de Luísa Machado para ilustrar o conto "Two Flamingos" de Gabriela Ripper Naigeborin.

Gabriela Ripper Naigeborin (mira) nasceu em 1997 em São Paulo, onde vive atualmente. Estudou literatura comparada, psicologia e cultura moderna na Universidade Brown e na Universidade de Cambridge. Hoje trabalha como assistente editorial na Ubu Editora, além de atuar como revisora de texto independente (@gabriela.ripper).


Quando eu te chamei pra me ajudar com o clube você tinha acabado de trancar a faculdade. Foi pelo menos quatro décadas atrás, você não tinha ideia do que fazer nem planos de voltar. Então começou no Noites Brancas como bartender quando eu tava começando a virar o mandachuva lá. Poucos meses depois, ainda não te conhecia bem, mas já bem o suficiente para te levar comigo depois da racha com a Emília. Sabe que a diaba apareceu aqui outro dia? Já faz alguns anos, mas nem lembrei de te contar. Ou não quis, talvez fosse na época em que a gente tava tretado e eu não quis encher sua cabeça com mais essa. Mas ela estava muito feia, e velha. Um balão murcho. Velha de peitos caídos, a maquiagem derretida na cara, parecia uma daquelas putas que já foram bonitas e sabem exatamente a aparência que têm, mas querem punir o mundo, junto com elas, pela sua falta de sorte, ou o que elas consideram como falta de sorte, porque nada nunca é culpa delas, e por isso carregam aquelas tetas sem leite estranguladas por um top apertado demais, que deixa sempre uns cortinados de pele flácida pendurados, e vestem aquela cara de “socorro, prometo que ainda sou feliz”, a chamada “máscara da noite”, uma espécie de máscara mortuária com cores vibrantes para simular vida e identificar a pessoa que as leva, como que avisando “sou eu, você me conhece, eu estou aqui, dançando como quando tinha dezesseis”.

Mas você sempre foi esperto, e por isso quis te levar comigo. E também por isso você veio – sabia que os dias da Emília estavam contados. O disco já não era o que tinha sido no começo dos anos 1970 e a mulher insistia na mesma fórmula, queria ver a pista lotada como em 1974. Eu já sentia o cheiro do house, andava fazendo minhas pesquisas em primeira mão, e você lembra, eu era estourado, perto daquilo eu hoje conheço a paz, mas no finzinho dos 1970 início dos 1980 eu estava com uns 30 e tantos, toda a energia mas já sem tanta paciência, e eu sabia que aquilo ali era algo diferente, tinha espaço pra se desenvolver e mesmo do ponto de vista racial, veja bem, do ponto de vista econômico, por assim dizer, era algo mais rentável porque apelaria também para um público branco, mais que o hip hop, pelo menos, que era outra coisa, não era um esquema que eu tinha condições nem interesse em armar, nunca foi a nossa cena e essa já tinha quem tocasse com muito mais propriedade. Mas a Emília é uma que nem mariposa de lâmpada fluorescente, a dela acendeu em 1974, e continua acesa, derretendo a maquiagem da velha.

O que acontece é que, nesse ramo, a gente entra por causa de uma noite muito boa que teve. E fica tentando replicar, e se sente muito bem fazendo isso, porque você está convencido de que a melhor coisa que você pode fazer por um jovem festeiro é dar uma festa que vai ser a festa que vai tirar ele da cama duas, três, até quatro vezes por semana quando se é jovem e o corpo aguenta o que a gente enfia nele, a festa que ele vai sempre caçar ou talvez, no nosso caso, isto é, meu e da Emília – você menos, que você sempre foi mais empresarial –, nunca ir embora, ficar sempre na festa, abrir a própria casa, Noites Brancas, Two Flamingos, e procurar aquela festa, aquela batida, em que encaixa tudo, e faz sentido; você não está mais pensando, mas a cabeça está verdadeiramente limpa para pensar, se fosse isso que você quisesse fazer. Digo fosse e não for porque nunca é esse o caso, que não dá tempo de pensar e nem tem no quê, quando se está lá, na pista. Inclusive, nesse estado, você sabe, não há distinção entre querer e ser; se você quer estar sozinho, o seu corpo se expande e vira um mundo todo, a biologia interna de pequenas explosões de prazer dos pés aos tímpanos contribuindo para a sensação de que você é, mais que um mundo, uma galáxia, com mundos autônomos e corpos celestes se movendo sem gravidade, deixando certo espaço entre eles para permitir o desconhecido, pequenos choques e histórias acontecendo e prestes a acontecer no pescoço, nos dedos, nos joelhos; mas se você quer estar com os outros, a pista vira esse enorme corpo celeste biológico com pequenos choques e expansões acontecendo dentro dele, sem foco claro; galáxias.

O negócio é que o meu deu certo. Eu acertei na mosca. E o Two Flamingos é, até hoje, o point mais clássico de São Paulo, não só para house, mas também para o techno, ambient, trance e até new age e algum synth-pop, porque não somos puristas, não dá para ser purista em São Paulo, deixem isso para os europeus com as suas Berghain da vida. Foi nessas, e é aí que estou querendo chegar, que conheci o menino. Não sei bem precisar quantos anos tinha, se dezesseis ou vinte ou talvez mais, mas era – isso é certo – um menino. O menino me aparece com um skate debaixo do braço, um público que não nos frequenta normalmente, diurno, mas o rosto calmo passava a impressão de que ele sabia onde estava, e pertencia ali. A ponto de eu me sentir impróprio no meu próprio clube. O molho de muitas chaves com chaveiro de alienígena de plástico preso na calça de lona larga demais para o corpo dele, magrinho, muito pálido contrastando com as mechas pretas por baixo do gorro, o peso do alien maciço puxando a calça para baixo, deixava ver o osso do quadril e umas veias roxas esverdeadas. Pensei primeiro se o menino teria as mesmas veias, simétricas, do outro lado, ocultadas pela calça. Lembro de ter me ocorrido um pensamento estranho, se o mais atraente nos jovens era a simetria ou a assimetria. Não pude decidir, então não soube adivinhar. O guarda tinha tentado expulsá-lo, “ele não fala nada, acho que está brincando com a gente, e se recusa a sair, já estava me movimentando conforme os procedimentos quando ele mostrou no celular o nome do senhor digitado, achei melhor consultar se não era um sobrinho ou parente, família está sempre causando problemas”.

O menino olhou para mim, deu um sorriso enorme, que naquela cara pálida era como uma doença, mas ele era muito bonito para causar nojo. Achei engraçado, e era o meio da tarde de uma quinta-feira, não tinha nada rolando. “O que você quer comigo, menino?”. Ele olhou para mim e, te juro, o menino viu o tom em que eu chamei ele de “menino”, ou talvez me pegou olhando ele de um outro jeito, não sei, mas não disse nada, por respeito a mim – já que o guarda, aquele altão careca, como ele chama, Jefferson ou Jêison, continuava ali plantado entre nós – e também em nome da sua brincadeira doente, mas ele sabia que eu tinha entendido e, com isso, eu entendia que tinha algo a ser entendido, era essa a graça, a simultaneidade interna de dois que não se tocam, como seria tocá-lo?, mas a ironia é que eu havia entendido errado, e era para eu ter entendido errado mesmo, porque só assim teria me sentido compelido a trazê-lo comigo para dentro, no escuro, o famoso Two Flamingos inteiro para ele – comigo. “Você já conhece a casa faz tempo?”, e ele se restringiu a mais um sorriso, como se estivesse drogado, durava no rosto mais do que o tempo que um sorriso deveria durar, seja de simpatia ou escárnio. E, ainda sorrindo, cruzou o espaço principal a passos firmes, como se fosse ele o dono do lugar, rumo às caixas de som principais e ao stand do DJ, onde já estava montada a controladora de três andares. Abriu a mochila e, como quem arma uma bomba sofisticadíssima, pela qual estaria disposto a se pulverizar, retirou um computador enorme, jurássico, com um novelo de cabos desencapados, em parte ou por toda a sua extensão, que formavam um nó de vermelho, azul, verde e amarelo, o qual plugou à controladora, enquanto eu desafivelava o cinto da calça, puxando para fora a parte que interessava. Na altura dos meus olhos, o alienígena se batendo tão rápido contra a mancha verde arroxeada se comunicava por meio de batidas a mais de mil, duas mil bpm. Quando bate tão rápido assim, é como se fosse só uma batida longa e contínua, com duração de mil, dois mil anos. Como uma noite que começou muitas noites atrás e, a cada dia, foi se repetindo, até todas as noites, no limite, ficarem exatamente iguais, o que quer dizer até ficarem exatamente a mesma noite, longuíssima, ela mesma mil, duas mil vezes, mas tão rápido que era a mesma, não só por repetição mas também por não ter nunca parado, longuíssima, esta noite. “Ele vai explodir essa porra.”

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Estou te explicando justamente para você não vir me encher o saco. Como se eu fosse um velho gagá que perdeu a noção do ridículo. E falar assim, sem pudores, é só com você. E é porque estou te vendo preocupado, e sem necessidade. Também sinto que te devo uma explicação – afinal, se o Two Flamingos não é também seu no papel, ele é por reputação. E a reputação, no nosso ramo, importa. A história de um lugar importa. Importa saber como as coisas acabaram, verdadeiramente, e, se fecharam, por que fecharam, em termos objetivos. Para falar de maneira direta, acabaram porque não tinham mais como continuar. A hora de fechar é a hora de fechar, é a desculpa que damos todas as noites aos nossos clubbers eternos. Amanhã é um novo dia, a noite acaba quando o dia começa, como todos sabem. Para eles, a ordem é invertida; o dia é o fim da noite, e não a noite, do dia. O novo dia é a noite que envelheceu tanto que morreu – a menos que noite e dia se alternem tão rápido que o dia seja curto demais para anular a noite e uma noite se reencontre logo com a próxima, se reencontre ela mesma na próxima. Isso que é alinhar pela batida, o som do coração primitivo que entende, sem comunicar, que em cada corpo humano ao seu redor, através das paredes de pele quente, carne firme e osso duro, há um outro. Mas que também entende que cada batida acelera o fim da noite, e o coração, cada vez mais velho, vai ficando infinitesimalmente mais lento a cada batida, ou com cada batida, pelo esforço de continuar batendo. Quando o novo é novo demais, e vai muito rápido, ele torna o envelhecer imperceptível. Mas a mudança acontece, mesmo dentro do mesmo. Isso é imperdoável. O único jeito de parar é fechar. “Subir o zíper”, como diriam. Socar as bolas da noite até ela ficar estéril, sem chance de futuro. Antes do clímax, antes do gozo. Antes de ficar velha.


Foto de Luísa Machado.

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