Gustavo Duarte, 28 anos, nascido em São Paulo. Como poeta, uma passagem fracassada pelo largo São Francisco e o livro “Lar de Orates“, editora Giostri. Professor autônomo há oito anos, atuante em projetos de educação popular e redação pré-vestibular.
Os avanços e os perigos em Depois a louca sou eu (Brasil, 2019)
Adaptação do best-seller homônimo de Tati Bernardi, a recém-lançada comédia dramática dirigida por Julia Rezende leva ao cinema temas urgentes acerca do ainda primitivo debate sobre saúde mental no Brasil. Acompanhando a trajetória biográfica da autora do livro, representada por Dani (Débora Falabella), o público testemunha as feridas, gatilhos e batalhas enfrentados por aqueles que sofrem de transtornos mentais em meio a guerra pelo sucesso na cidade.
“Sempre que eu tenho uma crise de pânico, é como se eu fosse um saco de bolinhas de gude que alguém roubou e na fuga deixou cair. Para que eu funcione, as bolinhas tem que se juntar, mas juntar essas bolinhas não é tarefa fácil”. Assim começa o filme. E com essa imagem devemos começar também a crítica.
Não podemos perder de vista que conciliar as exigências do mercado com a complexidade dos temas em questão é um desafio comum a todos. Protagonista, diretora, crítico e espectadores. Não há como exigir uma narrativa sensível, densa, revolucionária e sucesso de bilheteria num país em que o governo federal favorece interesses privados de comunidades terapêuticas medievais ao mesmo tempo em que prepara a revogação de portarias editadas de 1991 a 2014, visando o desmonte de políticas de saúde mental de rede pública do país, entre elas o CAPS, os Centros de Atenção Psicossocial. O caos individual é também reflexo do caos nacional. Nesse cenário, é preciso pragmatismo: pequenas conquistas concretas devem ser valorizadas.
Fato é que a saúde mental está em foco e a disputa narrativa está em aberto. O saldo final quem dirá é o tempo.
Se o assunto é pesado, o humor é aliado. Sim, o ideal seria tratar a questão com a seriedade que ela demanda, mas estamos longe desse ideal. Produções recentes como Midsommar (Ari Aster, Suécia, 2019) e O Farol (Robert Egger, Canadá, 2019) não geram tanta repercussão por esses cortes do globo, onde o riso ainda é carro chefe. Na obra de Julia Rezende, são muitas as cenas em que os conflitos psíquicos são representados de forma espalhafatosa, quase patética, o que pode gerar impressões distorcidas sobre a gravidade dos transtornos mentais, especialmente num ambiente social em que estes quase sempre são recebidos com indiferença ou expressão de fraqueza, imaturidade. Ainda assim, o simples fato de serem reconhecidos enquanto dramas reais é um avanço. Sem contar a parcela do público que se identifica.
Nesse ponto, a identificação, talvez resida o maior perigo. O recorte da narrativa é evidentemente classista. O universo explorado é de classe média. A protagonista é uma artista “intensa”, que “sente demais”, que possui acesso aos mais diversos métodos de tratamento, assombrada por uma mãe super protetora, no melhor estilo Psicose (Hitchcock, EUA, 1960). É um universo que existe, são problemas reais, mas sabemos que não é esta a realidade predominante.
Conflito existencial não é privilégio de artista, é condição humana. Os sintomas podem ser os mesmos, mas os fatores de crise são distintos a depender do universo, e todos procuramos soluções. Nesse sentido, a denúncia da medicamentalização, da impessoalidade nas consultas e da arrogância da classe médica são pontos positivos, na medida em que nos afetam a todos.
São passos tímidos, numa conjuntura desfavorável, para dizer o mínimo. Algumas risadas, muitos estereótipos nocivos e uma luz no fim do túnel: é o que tem pra hoje. Fato é que a saúde mental está em foco e a disputa narrativa está em aberto. O saldo final quem dirá é o tempo.
Depois a Louca Sou Eu está disponível no Prime Vídeo.