Yasmin Bidim vive na cidade de São Carlos, interior de São Paulo. Tem formação em cinema e é doutoranda em Estudos de Literatura pela UFSCar. Trabalha como pesquisadora e educadora de arte e cultura, artista multimídia e produtora cultural. Produz o canal Poesia em Obra, no YouTube, no qual divulga seus poemas visuais e também o blog A Terra é Plena. Em 2020 lançou pela editora Penalux seu primeiro livro de poemas, o Livro dos Interiores.
Durante 6 anos li essa frase pixada em uma das paredes do saudoso Palquinho, o centro de convivência do DCE Livre da UFSCar, universidade na qual cursei a graduação e o mestrado em Imagem e Som, um dos poucos cursos de graduação em cinema em instituições públicas do Brasil.
Nunca soube responder ao certo porque havia escolhido fazer uma graduação em cinema. Entrei na faculdade sabendo muito pouco do curso e sem expectativas em relação a uma carreira profissional. Eu não pensava a longo prazo. Sabia apenas que durante quatro anos assistir filmes e falar sobre cinema seria minha principal ocupação. E isso bastava. O que me fez estudar cinema foi o cinema em si. O encantamento. Uma força gravitacional que se manifesta sempre que um filme entra em nossa vida. Alguns filmes têm esse poder. Alguns filmes nos atravessam e nunca mais vão embora. Orientam nossas referências, nosso imaginário, nossa imagem de nós mesmos. Assistir a filmes é colecionar filmes. Colecionar imagens que continuam atuando em nossa psique indefinidamente.
É difícil explicar porque um determinado filme se destaca dos demais e passa para esse outro lado – o lado dos filmes que amamos –, que são, para nós, diferentes de outros filmes. Aos 21 anos, quando entrei na faculdade, tinha uma lista dos dez filmes da minha vida. Hoje a lista é extensa. E o mais recente integrante da minha coleção pessoal é o filme La Jetée, do Chris Marker.
Eu escolho falar dele pois é um caso particular de um filme que entrou na minha vida muito antes de eu assisti-lo. Na verdade não sei precisar quando. Sei que há muitos anos me impressiono com o nome depois de ter ouvido uma amiga falar do filme. La jetée, la jetée, la jetée. A sonoridade do francês ecoava e me admirava, mesmo que eu não soubesse o significado. E eu sempre soube que em algum momento precisaria assistir a esse filme. Precisaria me encontrar com ele.
La Jetée é um filme curto de apenas 26 minutos feito somente com imagens fixas, como Marília Garcia diz em seu poema, por isso ficou conhecido como uma fotonovela.
Em 2020 finalmente o encontro aconteceu e foi mediado pela poeta Marília Garcia. Ou melhor, por um de seus poemas. Lendo seu livro Um teste de resistores me deparei com os seguintes versos:
o filme la jetée do chris marker
é todo feito a partir de fotografias imagens fixas
que vão passando pouco a pouco
como um filme antigo
o cinema hoje também é feito de imagens fixas
mas são usadas 24 imagens por segundos
o que produz a ilusão do movimento
no filme de chris marker
ele usa a mesma imagem por vários segundos
deixando o espectador ver as imagens fixas
ele chama esse filme de fotonovela
uma linha aos olhos é uma sequência
de pontos
Depois de terminar o livro de Garcia soube que era hora de ver o filme. La Jetée é um filme curto de apenas 26 minutos feito somente com imagens fixas, como Marília Garcia diz em seu poema, por isso ficou conhecido como uma fotonovela. Mas, ainda que seja de fato um romance, é o gênero de ficção científica que se sobressai. E é o fato de ser um filme de ficção científica dos anos 60 que usa apenas de imagens fixas em preto e branco e nenhum recurso informático que faz de La Jetée um filme tão especial pra mim, que sou fã do gênero e tenho como um dos itens mais preciosos da minha coleção pessoal de filmes o clássico dos clássicos Blade Runner.
Cada imagem fixa é deixada por alguns segundos na tela de modo que possamos escaneá-la (…) e a montagem e a escolha das imagens fazem com que, embora seja uma fotonovela, sua combinação produz um efeito de fluxo de pensamento.
Se fosse lançado hoje, o filme de Chris Marker talvez entrasse no campo das narrativas distópicas, já que narra a experiência de um homem num contexto pós-guerra nuclear onde a vida se passa nos subterrâneos. O personagem principal é submetido por cientistas a diversos experimentos nos quais viaja no tempo e se encontra com fragmentos de memória de uma vida no mundo pré-apocalíptico.
Nessas viagens no tempo, ele se encontra com uma mulher misteriosa e passeia pela superfície com ela. Visita parques e museus. Caminha pela cidade. Não é possível para nós espectadores distinguirmos se esses episódios que ocorrem durante os experimentos são de fato lembranças do personagem ou se são devaneios. Esse fato na verdade pouco importa, o que se destaca é essa oposição entre um mundo pré e pós desastre, entre a possibilidade de uma vida na superfície, sob a luz do sol e uma vida no escuro, no subterrâneo onde o que resta é apenas uma lembrança confusa e fragmentada do que era a vida antes.
Toda essa narrativa é construída por meio de fotografias em preto e branco, pela narração em voz off e uma poderosa trilha sonora que conferem ao filme um grau altíssimo de poeticidade. A combinação desses elementos produz uma experiência fílmica altamente imersiva. Cada imagem fixa é deixada por alguns segundos na tela de modo que possamos escaneá-la, explorar todos os elementos. E a montagem e escolha das imagens fazem com que, embora seja uma fotonovela, sua combinação produz um efeito de fluxo de pensamento. Cada fotografia, cada plano do filme, não tem a função – ainda que sejam – de imagens fixas, mas instantâneos. Fragmentos de movimento, signos de ação. Essa escolha formal pelas fotografias ao invés de planos em movimento é particularmente genial do ponto de vista da história em si do filme cujo principal tema é a memória. Os instantâneos – fragmentos de imagens em movimento – são imagens muito potentes, do ponto de vista de seu valor signo, para produzir a ideia de uma memória fragmentada e confusa.
A narrativa, o drama e a história importam. Mas importa tanto quanto que seja uma história contada num filme.
Henri Bergson, posteriormente retomado por Deleuze, nos ensina que o movimento só pode ocorrer no presente. O presente “é a própria materialidade de nossa existência, ou seja, um conjunto de sensações e movimentos e nada mais”. O movimento nunca pode ocorrer no passado, já que este existe, no momento presente, apenas virtualmente. Precisa ser atualizado em lembrança. Logo, faz bastante sentido que em La Jetée essas lembranças, esses fragmentos do passado sejam representados como instantâneos, como imagens fixas, congeladas, pois o passado não contém jamais o movimento.
No entanto, essa “regra” é quebrada uma única vez no filme, numa das mais belas sequências a qual Marília Garcia também nos guia em sua poesia:
o filme la jetée do chris marker
é todo feito a partir de fotografias imagens fixas
que são repetidas por vários segundos
e dão a ideia de uma fotonovela
há uma única cena em movimento no filme inteiro
nessa cena
a mulher do passado
a que aparece sorrindo na foto do terminal de orly
a que o protagonista volta para encontrar
está dormindo
aparecem várias imagens fixas dela em posições diferentes
sempre dormindo
até que nessa cena
a única do filme em que ocorre o movimento
ela acorda
e olha para a
câmera
Nesta sequência ocorrem duas coisas que alteram o espírito e o estado de atenção – para nos mantermos no vocabulário bergsoniano – do espectador. Primeiro, um plano que contém de fato o movimento. Para isso há uma mudança material, ao invés de uma única foto ser exibida na tela por vários segundos temos o contrário, um plano no qual várias fotografias (fotogramas) são exibidas a velocidade de 24 quadros por segundo. É o princípio da mecânica cinematográfica que nos dá a ilusão de movimento.
… lembrar já é de algum modo viajar no tempo (…) o passado pode ser, a qualquer tempo, evocado e atualizado pelo que vivemos no presente.
É notável que Chris Marker explore as potencialidades da materialidade fílmica que essencialmente trabalham com a manipulação do tempo e do movimento num filme que aborda justamente a questão da memória, das lembranças e da possibilidade de viajar no tempo. E, com essa mudança brusca de uma única imagem fixa exibida por vários segundos na tela para uma série de imagens exibidas a uma velocidade tão alta que não conseguimos nem mesmo perceber os cortes, o cineasta cria uma ruptura no espectador.
É nesse momento, no qual os olhos da mulher se abrem, que fica mais forte a ideia da confusão entre lembrança, sonho e viagem no tempo. O que no fim das contas não importa, pois lembrar já é de algum modo viajar no tempo. Ainda que não haja de fato um deslocamento espacial, o passado pode ser, a qualquer tempo, evocado e atualizado pelo que vivemos no presente. Aliás, é somente pelo presente que se pode acessar o passado. Isso também Bergson nos diz: “essencialmente virtual, o passado não pode ser apreendido por nós como passado a menos que sigamos e adotemos o movimento pelo qual ele se manifesta em imagem presente, emergindo das trevas para a luz do dia”.
Ainda nessa imagem dos olhos se abrindo, temos a segunda perturbação ao espírito do espectador. Pois os olhos da mulher não apenas se abrem. Eles se abrem e olham para a câmera. Ou seja, além de não sabermos mais se estamos no passado ou presente diegético, também não sabemos mais se estamos dentro ou fora do filme. Olhar para a câmera é um recurso bastante clássico de quebrar a quarta parede no cinema e fazer o espectador sair da imersão da narrativa e se dar conta que está a ver um filme. No entanto, neste filme em particular o artifício reforça a importância que a materialidade fílmica adquire na obra. A narrativa, o drama e a história importam. Mas importa tanto quanto que seja uma história contada num filme. É isso que Godard quer dizer com “não imagens justas, mas justo imagens”. Uma história que só pode ser contada, algo que só pode ser dito por meio do cinema. Algo que, em sua essência, precisa ser visto, precisa ser materializado em imagens e não em texto.
Suspeito que La Jetée tenha entrado, não só na minha, mas em muitas coleções pessoais de filmes das nossas vidas, pois ele eleva a potência que o cinema tem, por si só, de nos confrontar diretamente, sem metáforas, com o tempo. É um filme que tem o poder de promover um encontro com o cinema enquanto arte. É um filme que, sempre que visto, renova nossa fé no Cinema.
Por isso que quando perdemos um filme perdemos a possibilidade de nos confrontar com o passado. Quando um filme deixa de existir é como quando uma memória se perde.
Wally Salomão diz que a memória é uma ilha de edição e isso fica claro quando assistimos a La Jetée. Mas essa metáfora quase literal é mais profunda do que somente a ideia de que nossas lembranças nos surgem como fragmentos de imagens que podem ser recombinados para nos lembrarmos do passado ou até mesmo para criarmos novas histórias e imagens que nem sequer existiram. Esse verso de Wally encerra também sua recíproca: o cinema é memória. Ou, pelo menos, é capaz de criar e guardar memórias.
O cinema é “justo imagens” que nos tornam capazes de ver o que muitas vezes não somos capazes de ver por nós mesmos. Por isso ele é sempre perigoso, por isso ele é atual e se dá, sempre, no presente. Pois ele é essencialmente movimento (a famosa imagem-movimento deleuziana). Mesmo que diante da tela esteja um filme de 1962, em preto e branco feito com imagens fixas.
Por isso que quando perdemos um filme perdemos a possibilidade de nos confrontar com o passado. Quando um filme deixa de existir é como quando uma memória se perde. Qualquer perda de acervos cinematográficos não é acidente nem tragédia. Não preservar nossos acervos audiovisuais é, de saída, um projeto de destruição da memória. Não preservar, não cuidar de nossa memória audiovisual é já uma escolha pela não preservação, pelo esquecimento. É já uma escolha pelo apagamento da memória coletiva de um país e pela possibilidade de o cinema continuar a nos atravessar e arrebatar.
Um projeto de destruição de nossa memória audiovisual é um projeto de nos impedir de ver nossa própria história. É nos cegar pra batalha. Neste ano de 2021 algumas luzes do cinema brasileiro se apagaram com o incêndio na Cinemateca Brasileira. Foi um atentado à nossa memória. E, para reagir, precisamos de imagens. “Justo imagens”. Precisamos continuar assistindo filmes, produzindo filmes, escrevendo sobre filmes, falando sobre filmes, conversando com os profissionais do cinema, das artes e da cultura em nosso país. É criando memórias e combatendo o esquecimento que teremos chance de fazer com que nossos filmes entrem cada vez mais às coleções pessoais dos filmes das nossas vidas e que não poderemos mais imaginar um tempo em que nossas imagens peguem fogo impunemente.
Na foto, minha amiga Catita posa embaixo da célebre pichação no Palquinho da UFSCar, ao lado do Departamento de Artes e Comunicação, sede do curso de Imagem e Som. Catita é animadora, editora e fotógrafa. A foto foi tirada por Aninha, outra amiga também profissional do audiovisual que está dentre os trabalhadores da Cinemateca Brasileira que foram demitidos em 2020, que até hoje esperam pelos salários atrasados.
O filme La Jetée está disponível para streaming no Mubi.