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Mandy – sede de vingança

por Daniel Russell Ribas
cena de mandy. foto editada de ANDREA RISEBOROUGH em filtro avermelhado. decora texto de Daniel Russell Ribas

Daniel Russell Ribas escreve crônicas para a página RUBEM, e contos e resenhas para a revista Tamarina Literária.


No livro O discurso cinematográfico, o professor Ismail Xavier reconta um jantar entre os cineastas Luis Buñuel, ícone do surrealismo, e Cesare Zavattini, roteirista de “Roma, cidade aberta”, entre outros. “Nesta conversa, Buñuel explica a diferença básica entre o cinema que ele quer, um cinema poético e aberto para o fantástico, e o olhar neorealista. Como jantávamos juntos, o primeiro exemplo que se ofereceu a mim foi o do copo de vinho. Para um neorealista, eu disse a ele, um copo é um copo e nada mais; (…) Mas este copo, observado por seres diferentes, pode ser mil coisas diferentes, porque cada um carrega de afeto o que vê; ninguém vê as coisas como elas são, mas como seus desejos e seu estado de espírito o fazem ver”. 

“Afeto” é chave para o filme Mandy – sede de vingança (EUA, 2018). A transformação através do afeto move tanto a narrativa quanto o subtexto. O diretor e co-roteirista Panos Cosmatos utiliza o campo dos slasher films e revenge films para homenagear e ressignificar uma época destes subgêneros. Presentes estão a premissa e seus referenciais. Contudo, a condução é diferenciada. Os personagens centrais e suas relações são priorizados, com o espetáculo surgindo a partir da metade do filme. A personagem-título é a condutora dos três atos dos filmes, que se comportam como movimentos musicais. O primeiro é como música de câmara que troca os elementos de orquestra por eletrônicos.

Antes, apresenta um desenvolvimento gradual, num ritmo lento e contemplativo. O uso extremo de cores nos diálogos prosaicos trocados pelo casal formado por Red e Mandy denota a intensidade quieta do relacionamento. Não há grandes acontecimentos, somente confissões e observações. A paleta, aliada à trilha synthpop quase onipresente, denota em termos visuais quão intensa é a intimidade destes personagens. Nesta busca há mais do que estética, mas uma representação do lado humano negligenciado em produções ordinárias de horror, em que o foco está no espetáculo. Isto será inclusive importante para a apresentação final, em que o espetáculo de loucura e sangue funciona como uma exteriorização da fúria do sobrevivente. 

Após o estabelecimento deste ambiente e o amor entre Mandy e Red, o filme se foca nos vilões. No lugar da harmonia paradoxal das encenações com luzes vibrantes de azuis, vermelhos e verdes, surge o caos adormecido em rosas, verdes e vermelhos saturados. O culto “Children of the New Dawn” e seu líder, Jeremiah Sand, são calcados em Charles Manson e seus seguidores, desde o visual às atitudes. É um grupo de fanáticos, enlouquecidos por religião e drogas, cujo sadismo é expressão de uma personalidade com complexo de Messias. Nesta segunda parte, há menos introspecção, e o artificial é destacado. Ao contrário da complementariedade exibido pelo casal que será vítima, o afeto no bando é baseado em expressões de opressão. A subserviência de um mundo que orbita ao redor de um, que pune, exige ou elogia seus seguidores de acordo com o desejo. Isto culmina no encontro brutal que conecta as narrativas numa sequência que remete a pesadelo. O diretor oferece a violência do gênero de horror, porém destaca seu efeito nos personagens. Há uma rejeição do voyeurismo grotesco para uma perspectiva na figura de sofre. Logo, a brutalidade torna se não um requerimento falso, mas uma consequência dos processos mostrados nos três personagens centrais: Red, Mandy e Jeremiah Sand. 

Antes do evento que engatilhará o último terço do filme, Panos Cosmatos pincela esta segundo segmento com referências quase gratuitas à iconografia de que bebe. Por exemplo, a casa isolada na floresta de Red e Mandy fica na região de Crystal Lake, local recorrente dos assassinatos na franquia “Sexta-feira 13’. Deste diálogo aberto entre espectadores de nicho, a presença dos Black Skulls é o único que ganha vigência própria na obra. Uma gangue de motoqueiros a serviço do culto, seu visual sadomasoquista e apresentação sobrenatural remete às criaturas de “Hellraiser” e “Silent Hill”. Estas citações funcionam como alusões para a natureza do filme e preparam para o ato final, tomado pela fúria de Red e a estética pop. 

A terceira parte, que leva o título do filme, é a consequência da narrativa e os afetos disponibilizados. O massacre vira uma exteriorização do mundo internalizado, a raiva instalada pela perda de algo importante por meios superficiais. Red, logo, materializa uma fantasia de luto na busca e eliminação dos culpados. A obra se assemelha a um álbum de heavy metal filmado, com o espetáculo disposto sem pudores. A perfomance de Nicolas Cage é essencial, pois, mais do que a figura folclórica que transitou de produções artísticas ao cinema B, é importante que o personagem Red carregue algum sentimento palatável quando embarca de vez no fantástico da premissa. A fúria de seus atos possui uma alegoria universal. “Mandy – sede de vingança” é uma obra que apresenta uma profundidade e um carinho pelo cinema de gênero poucas vezes vista ao descortinar a visceralidade dele.

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