• 0

    Frete grátis a partir de R$ 110

O fato estético de Borges em “Beleza Americana”

por Gustavo Duarte
Imagem de Maria Cecília Chaves Machado para ilustrar o texto "O fato estético de Borges em Beleza Americana", de Gustavo Duarte.

Gustavo Duarte, 28 anos, nascido em São Paulo. Como poeta, uma passagem fracassada pelo largo São Francisco e o livro “Lar de Orates“, editora Giostri. Professor autônomo há oito anos, atuante em projetos de educação popular e redação pré-vestibular.


“A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético.” (A muralha e os livros, Borges, 1950. In: Outras Inquisições)

Quem por chance ou (des)ocupação já esbarrou nessa abalizada citação, decerto não caminha distraído como antanho. Por onde passamos, permanece a inquisição: Estaria aqui, nessa música? Nesse rosto? Nesse crepúsculo? Nesse lugar? Será esse o fato estético? E o que não deveríamos ter perdido? Será agora o momento iminente? A revelação, por que não se produz? Que é, que diz, onde está o fato estético?

Não há razão para decifrar, visto que a definição de fato estético carrega em si o fato estético — não se revela, antes devora. A revelação iminente que certa beleza expressa não se produz por um motivo evidente que é sua genitura, necessidade vital; o enigma é sua condição de existência, sua resolução resulta em sua dissolução, tal qual esfinge. Trata-se do fato por seus efeitos, não pelas causas. Como relata Borges no referido ensaio, a satisfação concomitante à inquietação — reações suscitadas pelo fato estético — se dão justamente na aparente ausência de sentido, a forma virtuosa que independe do conteúdo. Desse modo, a compreensão das palavras de Borges não deve implicar em domínio racional sobre as manifestações sensíveis da matéria, longe disso, eleva a consciência à sujeição do que se sabe pelo que não se pode saber.

Ainda assim, para além da fruição, haveria valor prático em definição de tal esmero? Atenção. Preste atenção. É preciso prestar atenção. Despertar e educar o olhar. É preciso estar disposto. Somente assim, conscientes da existência (dela e nossa), a beleza nos comunica. Do contrário passeamos inertes, ao passo que ela desvanece, eis o alerta de Borges.

Esse mesmo alerta, essa mesma fundamentação estética, encontramos na obra-prima “Beleza Americana” (Sam Mendes, 1999). Já na abertura, o narrador-defunto Lester Burnham (Kevin Spacey), sujeito comum de meia-idade, nos apresenta a trajetória de seu último ano em vida. Enquanto as cenas percorrem seu bairro, sua casa, sua família e sua rotina, ele anuncia: “Essa é minha vida, eu tenho quarenta e dois anos e em menos de um ano estarei morto; é claro, ainda não sei disso; e de certa forma, já estou morto”. Em seguida acrescenta: “Minha esposa e minha filha pensam que sou esse tipo gigantesco de perdedor, e elas estão certas; eu perdi algo, não sei exatamente o que; mas sei que nem sempre fui assim, tão… sedado. Mas quer saber? Nunca é tarde demais para recuperar!”.

Identificamos, destarte, o fantasma da mortalidade, presença medular em “A muralha e os livros”. O fato estético que motiva as indagações de Borges, culminando na definição em questão, remete ao império chinês de Che Huang-ti, o homem que ordenou a edificação da famigerada muralha, e que também mandou queimar todos os livros anteriores a ele. A concentração desses dois atributos numa mesma figura satisfaz e inquieta Borges, que conjectura: “Che Huang-ti, segundo os historiadores, proibiu qualquer menção à morte, e procurou o elixir da imortalidade, e recluiu-se em um palácio figurativo, que constava de tantos aposentos como dias tem o ano; esses dados sugerem que a muralha no espaço e o incêndio no tempo foram barreiras mágicas destinadas a deter a morte. Todas as coisas querem persistir em seu ser, escreveu Baruch Spinoza”.

Ademais, a declaração de Lester centraliza o tema da estética, na medida em que sedação é sinônimo de anestesia (do grego antigo, an – ausência; aisthesis – estética, sensação), associado àquilo que, segundo Borges, em algum momento perdemos. Há, contudo, um elemento fulcral no filme que suplementa a inquisição acerca da beleza: a noção ideológica de sucesso que marca a identidade da sociedade americana. Essa distinção não pode ser ignorada por qualquer que seja a reflexão estética, uma vez que permeia o cotidiano, muitas vezes o acelera e, por conseguinte, reduz o espaço que possibilita o sentir. À vista disso, o sucesso não somente asfixia, silenciosamente, como também antagoniza a beleza, pois esta não possui finalidade, é livre do resultado, que por sua vez determina o sucesso.

No instante em que o belo assume o lugar do sentido, o pensamento, ainda que satisfeito, se inquieta. Isto posto, não pode haver fato estético onde não houver maturidade e incompletude. Sem a expectativa por algo a ser dito, não haverá iminência de uma revelação.

Nesse cenário, Lester, nosso herói medíocre, inicia o processo de desapego do roteiro, dos papéis sociais, do consumo, das preocupações tributáveis; seu último ano de vida é definido pela reorientação das coisas graves: a procura, o reencontro do fato estético. Para tanto, a belíssima Angela Hayes (Mena Suvari) surge em sua jornada. Amiga de sua filha Jane (Tora Birch), esta que é uma típica adolescente, confusa, insegura e irritada. Mais do que atraído, Lester sente uma espécie de transe pelo desabrochar da beleza de Angela, que está na flor da idade.

A partir daí, nosso herói se reconecta com o tempo em que ele mesmo era jovem. No mesmo sentido e faixa etária surge Ricky (Wes Bentley), filho do vizinho ex-militar Frank Colonel (Chris Cooper). Um rapaz tão lúcido que assusta seus colegas de escola. Não à toa, Ricky já passara por uma internação psiquiátrica e conquistara sua independência financeira. Durante uma cerimônia empresarial, em que trabalha como garçom, disfarce para seu comércio de maconha, Ricky encontra Lester, que aceita o convite para fumar um baseado, o que não fazia há décadas. Ao final da noite, Ricky pede demissão, num ato espontâneo e insolente, o que acentua ainda mais o estado de excitação de Lester.

Assim, a liberdade, a inspiração, a irresponsabilidade, os impulsos da juventude voltam a conversar com Lester. De volta a Borges, aquele algo que certos rostos trabalhados pelo tempo nos disseram e que não deveríamos ter perdido: como, quando e por que perdemos?

Estariam as respostas na adolescência, esse momento dúbio em que a ingenuidade se desfaz frente à iminência da vida adulta? Seria o fato estético reservado aos que superam essa fase sem que seja usurpado o olhar pueril, sonhador, que por todos os lados descobre fácil acesso ao que há de belo no mundo?

Tentador e reducionista concluir que sim. Mas não podemos perder de vista que, mesmo onde não há pressão pelo sucesso, há desilusão; o fato estético não carrega unicamente a satisfação; a inquietação é parte do processo de amadurecimento da consciência. Na infância tudo é belo em abundância, em contrapartida não existe a contemplação, pois o ato de descansar e apreciar, sentir um breve instante de alívio, pressupõe o peso da busca por sentido que a consciência humana produz. No instante em que o belo assume o lugar do sentido, o pensamento, ainda que satisfeito, se inquieta. Isto posto, não pode haver fato estético onde não houver maturidade e incompletude. Sem a expectativa por algo a ser dito, não haverá iminência de uma revelação. A criança vive realizada em sua condição infante, e ainda que sua satisfação seja volúvel, é pura e plena enquanto decorre, sem a companhia da inquietação. Nesse estágio da vida, caracterização da inquietude é outra, é curiosidade pulsante que mobiliza; a da tomada de consciência é perturbação que assombra.

O despertar de Lester, o encontro do fato estético, não está meramente em seu contato com a juventude, que possibilita a retomada do olhar de criança que se perdeu na flor da idade. É preciso ir além. É preciso ir ao além. É em face da morte, no último segundo, no momento máximo e absoluto do que se pode entender por iminência de uma revelação, que podemos encarar o mistério dos mistérios, o mistério da vida, o fato estético por excelência. Nosso herói precisou morrer para, em seus momentos finais, diante do retrato de sua família, experienciar conscientemente a força da beleza do mundo que sua passagem encerra e, já morto, reportar ao expectador do que se trata.

Em paralelo, não é o caso de Ricky. Lá pelas tantas, ele é confrontado por Angela enquanto filma um pássaro morto; noutro momento, ao conversar com Jane, ele disserta sobre o dia em que se deparou com uma moradora de rua congelada pelo frio, e como ali pôde contemplar, por alguns segundos, a face de Deus; numa das cenas finais, ele encara olho no olho a face banhada em sangue de Lester, baleado pelas costas.

Ricky escolheu enfrentar a mortalidade que o cerca antes que o fecho cercasse, escolheu bater de frente com o fim antes de sua hora, para assim encontrar beleza diluída entre as horas insípidas da existência. E a coragem para tanto, encontrou onde? Esse é o trecho mais belo do filme e que melhor ilustra a definição de Borges. Enquanto mostra para Jane “a coisa mais bela que ele já filmou”, Ricky diz:

“Era um daqueles dias, quando está a um minuto de nevar e tem essa espécie de eletricidade no ar, você quase chega a ouvir. E essa sacola estava como que dançando comigo. Como uma criancinha implorando para que eu brincasse com ela. Por quinze minutos. E foi nesse dia que eu soube que existia toda uma vida inteira por trás das coisas, e essa incrivelmente benevolente força que gostaria que eu soubesse que não há razão para temer. O vídeo é uma pobre desculpa, eu sei, mas me ajuda a lembrar… e eu preciso me lembrar. Às vezes há tanta beleza no mundo que eu sinto que não vou suportar, sinto que meu coração vai sucumbir”.

Temos aqui todos os elementos presentes no fato estético. O objeto (lugar, rosto, crepúsculo etc) que algo disse, quer dizer ou está prestes a dizer, a promessa de uma revelação, a iminência, o consequente mistério. Ricky, não obstante, decide por decifrá-lo, ou, ao menos, interpretá-lo. Existe, em sua visão, por trás do que é belo e aparentemente sem sentido, uma força divina. Força essa que, quando sentida e compreendida tal como ele processa, oferece a acomodação da inquietação na satisfação, algo como a paz dos anjos que habitam a terra.

Nesse sentido, se a resolução do enigma da esfinge representa a tomada de consciência do homem de si mesmo e a queda no abismo existencial da razão, a conciliação do fato estético desvenda a consciência de todas as coisas, o que nos coloca, em vida, na presença da eternidade, o paraíso perdido, a beleza deste mundo. 


Foto de Maria Cecília Chaves Machado.

Leave Your Comment

faz um PIX!

Caso dê erro na leitura do QRCode, nossa chave PIX é editora@aboio.com.br

DIAS :
HORAS :
MINUTOS :
SEGUNDOS

— pré-venda no ar! —

Literatura nórdica
10% Off