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Repressão e liberdade em A Casa Lobo

por Caio Naressi
Cena de A Casa Lobo ilustrando crítica de Caio Naressi

Caio Naressi é cofundador do FotSom e cineasta independente desde 2015. Atualmente realiza um doutoramento em cinema pela Universidade de Montréal onde pesquisa a possibilidade da transcrição da memória autobiográfica em animação.


Um filme de animação, com preâmbulos de conto de fadas, mas que acaba por ser um filme de terror bastante sinistro. Talvez sejam esses os elementos que me conquistaram em A Casa Lobo (Cristóbal León, Joaquín Cociña, 2018), um filme único e bastante peculiar para aqueles que estão acostumados com a animação tradicional. 

Fui ao cinema sem saber exatamente o que me esperava e aos poucos fui acostumando-me com a sala escura e com o filme que se projetava em minha frente. Apesar de muitas vezes ser uma película complexa de entender, é uma experiência visual singular e nos deixamos ir no vai e vem entre narrativa e estética.

Dando um contexto geral da história: Maria é uma jovem moradora da colônia Dignidad, no Chile, uma espécie de campo de concentração fundado em 1961 pelo nazista Paul Schäfer, que se refugiou no regime Pinochet para explorar os dissidentes da política ditatorial chilena. Aliás, essa mesma colônia já foi cenário de alguns filmes anteriores, como Amor e Revolução (Florian Gallenberger, 2015) e La Colonia (Orlando Lübbert, 1987). Retomando a narrativa: Maria luta contra toda a repressão estabelecida pela colônia. Um dia, sem querer, deixa escapar três porcos que fogem para a floresta. Inspirada pelos porcos, Maria também resolve fugir. Porém, o que ela não sabia era que um lobo mau a espreitava. Por sorte, Maria encontra refúgio em uma casa abandonada, onde resolve se proteger do lobo e onde todo o embate entre liberdade e repressão se desenrola.

Para nós (…) é quase impossível entender a dimensão da realidade de Maria, pois essa varia a todo momento, assim como os personagens, preservando apenas as características mais fundamentais de cada um. 

O filme é uma grande metamorfose entre espaço e personagem. Em primeiro lugar, conhecemos Maria a partir de um desenho pintado em uma parede. Aqui vale uma pequena pausa para falar um pouco sobre a construção do filme. A animação é toda feita em stop motion e os realizadores, Cristóbal León e Joaquín Cociña, filmaram todo o filme a partir de instalações artísticas em diversos museus do mundo. Portanto, quando digo que conhecemos Maria a partir de um desenho em uma parede, é realmente assim que ela nos é apresentada. Em princípio, o filme está sempre em construção, criando ora os personagens, ora o próprio espaço, ora os dois juntos.

A questão da metamorfose, então, é muito importante para entender como Maria se torna o espaço e como esse espaço se modifica de acordo com os anseios dela. Para nós, espectadores, é quase impossível entender a dimensão da realidade de Maria, pois essa varia a todo momento, assim como os personagens, preservando apenas as características mais fundamentais de cada um. 

O longa é uma realidade possível na medida em que a técnica de animação pode criar e recriar espaços sem limitações da realidade. Há essa fusão entre espaço e corpo como uma coisa híbrida. Se colocarmos esta reflexão sobre o corpo de Maria, que se torna casa, entendemos que o espaço não é apenas um lugar onde se realiza a ação, mas sobretudo é um local que se desenvolve e se transforma em relação às ações de Maria. Cito a pesquisadora Lucia Angelino que nos explica, em um artigo sobre a questão do corpo para Maurice Merleau-Ponty, como o filósofo define o corpo: 

[C]omo potência de ação, o corpo é dotado de um conhecimento do lugar “que se reduz a uma espécie de convivência”, conhece seu entorno “como o conjunto de possíveis pontos de aplicação dessa potência”; é assim que seus gestos estão de acordo com o que ele quer e com o que as coisas exigem dele. (2008, tradução nossa)

Aqui está uma bela compreensão da questão do corpo em metamorfose de Maria. Maria não precisa procurar nada em sua casa porque ela já sabe onde tudo está, por dominar o seu espaço, assim como domina o seu corpo. Ela conhece a ação que ocorre em cada cômodo sem estar presente nele, uma vez que seu corpo é a metáfora de sua própria casa. Novamente de acordo com Angelino:

[O corpo] conhece de antemão – sem ter que pensar no que fazer e como fazer -, ele conhece […] seu entorno como campo de alcance de suas ações, como um “conjunto de manipulanda” e se acopla às coisas que deixam de ser objetos para se tornarem quase-órgãos, contribuindo para a amplitude da abertura corporal para o mundo. (2008, tradução nossa)

O corpo, para Merleau-Ponty, é, então, um espaço eminentemente expressivo. Não só é um espaço de expressão, como é o próprio movimento de expressão, que projeta significados dando-lhes um sentido gestual, onde tudo se origina no sujeito.

Pensando que aqui falamos de objetos inanimados que só ganham vida a partir do movimento ilusório do cinema, ou seja, quadro a quadro, o corpo é a maneira de Maria existir, de ter um mundo, seu próprio mundo, para conectar-se com seus próprios desejos e a matéria viva da realidade. Esta é também uma maneira dela escapar da sua comunidade (ou do lobo), e, claro, fugir da realidade cruel do mundo que a reprime. 

A partir de uma história trágica da política chilena, os realizadores conseguem trazer para uma perspectiva pessoal os dilemas da liberdade e da repressão, do ser livre e do ditador. 

São nessas transmutações e transformações que percebemos a questão da subjetividade de Maria. O modo de sentir dela só pode ser representado pela animação. É neste universo de criação que Maria se torna seu lar e que as ideias do corpo próprio de Merleau-Ponty podem ser representadas. Uso um texto do pesquisador Marcel Jean sobre animação onde podemos entender como essa técnica acrescenta à Maria um caminho mais complexo e mais próximo de sua realidade:

Essa predominância da metamorfose na animação não é surpreendente. Na verdade, o acesso a essa figura é de certa forma uma das vantagens oferecidas pela ausência de um corpo real, pela ausência de materialidade. Isso é simplesmente uma forma de compensação. Que os primeiros animadores tenham aproveitado esta oportunidade é compreensível já que, na origem, o desenho animado não podia aspirar, mesmo de forma aproximada, ao realismo do live action. O interesse da animação residia precisamente na possibilidade que essa oferecia de brincar com as formas. (…) O que a metamorfose sugere ao mesmo tempo é a mudança e a permanência. Permanência de um corpo ou lugar sujeito à passagem contínua do tempo. (2006, tradução nossa)

A metamorfose desta casa é uma forma de dar à Maria mais uma esfera da sua sensibilidade: seu corpo e sua casa são a mesma coisa. Assistir à transmutação desta casa é também entender como a personagem se encontra em relação à fuga da colônia. Entender que a repressão sofrida por anos na colônia não a deixa sobreviver da maneira que deseja. Como diria Cartola: “O mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho / Vai reduzir as ilusões a pó”. 

Maria, aos poucos, percebe que a liberdade que deseja é algo utópico. Afinal, o título A Casa Lobo se refere à casa que é, portanto, lobo e que também é Maria. O lobo é como o moinho de Cartola e estará sempre a espreita para destruir todas as possibilidades de uma felicidade. A partir de uma história trágica da política chilena, os realizadores conseguem trazer para uma perspectiva pessoal os dilemas da liberdade e da repressão, do ser livre e do ditador. 

Além de uma experiência estética única, A Casa Lobo é um filme filosófico que nos questiona sobre essência e sobre o trágico destino a que somos acometidos. Ao final do filme, ficamos com algumas questões que dão sentido à nossa existência: É possível mudar nosso destino uma vez que o mundo permanece ainda em regimes severos de vigiar e punir? Existe escapatória para nossa liberdade? Ou será mesmo que o mundo vai reduzir todas nossas ilusões a pó? Desculpem o pessimismo, mas eu havia dito que esse filme era algo um tanto quanto sinistro. Afinal de contas, nem toda animação é para crianças.


TEXTOS CONSULTADOS

Angelino, Lucia. 2008. « L’a priori du corps chez Merleau-Ponty ». Revue internationale de philosophie n° 244 (2): 167‑87.

Jean, Marcel. 2006. « Figures de la métamorphose » in Le langage des lignes et autres essais sur le cinéma d’animation. Nouv. éd. Cinéma. Montréal, Québec, Canada: 400 coups.

Comment (2)

  • Olá. Tudo bem?

    Estou a procura do texto usado para consulta: Le langage des lignes et autres essais sur le cinéma d’animation do Marcel Jean. Alguma chance de achar ele na Internet?

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