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um tempo para viver, um tempo para morrer

por Rafael Meneses Miranda
Recorte de imagem de Tempo (M. N. Shyamalan) ilustrando crítica de Rafael Meneses Miranda

Rafael Meneses Miranda é graduando em Letras na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Anda de skate e escreve sobre cinema no seu Letterboxd. É colaborador da revista Aboio.


Esse texto possui spoilers sobre todo o enredo do filme Tempo. Se você ainda não o assistiu, está perdendo.

Voltei pro cinema, depois de quase dois anos assistindo tudo em casa, pra assistir Tempo (2021). Fiquei com medo quando um bêbado trôpego entrou na sala depois que a sessão já tinha começado. Tive quase certeza de que essa pessoa iria me matar. Afinal, na minha casa, pelo menos nos últimos 18 meses, ninguém entrou pela minha porta enquanto eu via algo. Excluindo o projecionista e contando eu, esse ébrio e uma outra senhora, três pessoas assistiram. Antes achava que só iria voltar no final do ano, quando (rezo a Deus que esse venha pra cá com esse título) Chora Macho (2021) for lançado. Fiquei imaginando se a minha colega e o alcoolizado também estavam retornando a telona depois de muito tempo. Fico feliz quando penso que sim.

Não sei como começar a falar sobre Tempo. Seria fácil ser espertinho e citar alguma frase do Proust (“O tempo, que muda as pessoas, não altera a imagem que temos delas”) ou a famosíssima de Cocteau (“Assista toda a sua vida em um espelho e você verá a morte no trabalho como abelhas em uma colmeia de vidro”) em Orfeu (1950), tão síntese do cinema e tão aplicável aqui. Talvez lembrar de A Mocidade do Senhor Lincoln (1939) e seu rio, o mesmo de Heráclito, que serpenteia pela história até desaguar aqui, nessa praia, nesse limbo. Ou ainda compará-lo com outros filmes que retratam toda uma vida, como O Diabo Disse Não (1943), Rio Vermelho (1948) e O Irlandês (2019). Seria possível até voltar a Bazin com a sua metáfora do embalsamento. Mas todos esses nomes tiram o foco do único que importa aqui: Shyamalan.

Por exemplo: não conheço, além de Tsai Ming-liang e Tarkovski, outro diretor tão obcecado com a água quanto Shyamalan.

Manoj Nelliattu Shyamalan não é um cineasta iniciante. Trabalha há quase trinta anos no circuito comercial. Dirige, escreve, produz e, recentemente, financia seus filmes. Se para quem o acompanha há muito tempo ele parece diferente aqui, essa desconformidade se explica da mesma forma que a de Tarantino em Era Uma Vez Em Hollywood (2019): são diretores amadurecidos, mais velhos, conscientes de suas técnicas, temas e carreiras, depurando a sua arte para atingir uma nova etapa cinematográfica. Não acho que Tempo seja exatamente uma obra-panorâmica, como o trabalho do seu colega é, mas com certeza se trata, desde Sinais (2002), da melhor junção de todos os elementos que o fascinam até hoje.

Por exemplo: não conheço, além de Tsai Ming-liang e Tarkovski, outro diretor tão obcecado com a água quanto Shyamalan. Na sua filmografia, esse elemento não é só simbólico ou pitoresco como possui funções narrativas em momentos chaves, como o desfecho de Sinais, Vidro (2019), O Último Mestre do Ar (2010) e obviamente todo o A Dama na Água (2006).

Na prática, não são símbolos nem metáforas, só elementos concretos de uma vasta visão harmônica

Aqui, porém, essa liquidez, que é a do mar, é estabelecida “somente” como elemento desse território fundamental: a praia. É nisso que consiste a mudança na unidade estilística que mencionei antes, esse é o filme menos tolhido do diretor, onde tudo parte de uma premissa extremamente simples (três famílias turistas se encontram presas em uma praia deserta onde o tempo avança mais rápido). Daí a força inédita dos seus símbolos e metáforas: eles são totalmente integrados à narrativa. Na prática, não são símbolos nem metáforas, só elementos concretos de uma vasta visão harmônica, encenada a partir de uma HQ francesa chamada Castelos de Areia.

Outra novidade é a preocupação do cineasta com os corpos, ou, mais especificamente, com a transitoriedade das aparências. O nascimento, que origina uma fisionomia menor e aqui frágil, depois as crianças, sempre fontes de alegria e pureza na sua filmografia. Logo vem a adolescência, período da possibilidade do amor, até se tornarem adultos, cegos às possibilidades místicas escondidas no cotidiano que os mais novos veem (em Vidro, o personagem titular diz que um outro, um homem que acha ter 9 anos pra sempre, deveria aproveitar, pois nessa idade “você vê as coisas como elas realmente são”). Todos esses períodos anatômicos aqui são progressivamente explorados, com a inconstância da forma humana acompanhando a duração do longa.

A fita não é só um suspense, é um eco-horror em que o verdadeiro monstro é o elemento mais essencial da existência

E se várias senhoras já assumiram o papel de monstros antes, como em Fim dos Tempos (2010) e A Visita (2015), aqui essa figura é ainda mais (literalmente) distorcida, pois vemos que antes era uma jovem obcecada com aparências. Todas essas besteiras, as brigas de casamentos, as obsessões com beleza, as desavenças com parentes, um dia, no meio do filme, se tornam menores, insignificantes.

Daí a obviedade em dizer que o filme “é uma metáfora para a vida”. Mas, ainda sim, a parcela de verdade nessa expressão reside no fato que esse pode ser visto como o longa mais metalinguístico de Shyamalan: a imagem dele mesmo segurando uma câmera filmando os seus atores-personagens-cobaias não vai ser ignorada, como a que ele é um escritor que está destinado a mudar o mundo, em A Dama na Água, infelizmente também não foi.

… o filme e a praia são a vida, suas regras temporais são iguais aos da nossa percepção de tempo, os pais e as crianças são também os nossos genitores e filhos.

Também não acho que Tempo deveria ser reduzido a algum tipo de mensagem que nos ensine a “viver no presente”. A fita não é só um suspense, é um eco-horror em que o verdadeiro monstro é o elemento mais essencial da existência, uma grandeza física do sequenciamento dos eventos naturais que os relógios leem bem, e o nosso cérebro nem tanto. Só crianças de colo e idosos com doenças neurológicas podem perder a percepção dele, e esses dois grupos são continuamente descartados.

Aqui a relação entre o ficcional e o “real” parece ser indivisível. Talvez essa seja a sua maior conquista: o filme e a praia são a vida, suas regras temporais são iguais aos da nossa percepção de tempo, os pais e as crianças são também os nossos genitores e filhos. Pelo menos por uma hora e cinquenta e oito minutos. Diferentemente de três dos filmes citados no começo do texto, O Diabo Disse Não, Rio Vermelho e O Irlandês, esse aqui também acompanha a existência de um grupo ao longo de quase duas horas. Mas, graças a sua encenação perfeita, marchamos de maneira propositalmente acelerada, entrelaçando a duração da ilusão da praia à duração da ilusão do cinema à duração da ilusão da vida.

Para Shyamalan, cinema não é gravar o trabalho da morte, é o sorriso orgulhoso de um velho demente.

Se cada filme realmente é um mundo, esse é um dos mais bem construídos que eu já vi.

A execução consiste em panorâmicas deslizantes. A lentidão desses movimentos, que se assemelham a de uma virada de cabeça, enfocam uma parte do grupo, enquanto naturalmente outra fica no fora de campo. E é nessa área, fora de vista, como um crime sem testemunhas, que o tempo dispara como uma bala nos outros. Quando a câmera volta a mostrá-los, mesmo que só segundos depois, algo neles já mudou. Essa mudança é a oxidação, o apodrecimento da carne, a corrupção da mente. A morte.

No futuro, o que mais vai me assombrar daqui é um Gael Garcia Bernal envelhecido, contemplando o seu filho. Seu olhar, como planos desfocados nos lembram, são de uma vista cansada, possivelmente registrado em uma mente com Alzheimer. Não há falas nem nenhum outro gesto além de uma alegria de canto de boca, um riso de pai. Para Shyamalan, cinema não é gravar o trabalho da morte, é o sorriso orgulhoso de um velho demente. “Como meu menino cresceu rápido!” Essa memória o tempo não destruirá.

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