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dores, porvires e o assombro das paixões

por Anna Carolina Rizzon
Imagem de divulgação do filme The Word to Come. Ilustra crítica de Anna Carolina Rizzon

Crítica do filme The World to Come (EUA, 2021), de Mona Fastvold.

Anna Carolina Rizzon nasceu no Rio de Janeiro, cresceu em Teresópolis e fugiu para São Paulo. Tem muitos diários.


Parte I: de quem viu

i. algum mês do segundo trimestre de 2020

A imagem de Abigail, protagonista de The World to Come (EUA, 2021), estirada na cozinha com os braços abertos sobre a mesa e as pernas inclinando o banco de madeira enquanto repete, entorpecida, “astonishment and joy; astonishment and joy; astonishment and joy” – a captura estática desse torpor foi a primeira imagem a circular sobre o filme pela mídia de entretenimento e pelas redes sociais. Normalmente, vinha acompanhada de sua breve sinopse – “em 1856, duas mulheres desenvolvem uma relação próxima, apesar de seu isolamento na fronteira americana” – e dos créditos, ainda mais breves, à diretora norueguesa Mona Fastvold e ao escritor norte-americano Jim Shepard, co-autor do roteiro e autor do conto que lhe deu origem.

ii. 28 de dezembro de 2020

O livro homônimo custou R$ 81,24 na Amazon, versão Kindle.

iii. 01 de janeiro de 2021

Arraial do Sana é um distrito do Rio de Janeiro que atende pela alcunha de “Portal do Paraíso das Águas” e está localizado a uns 150km de Teresópolis, onde minha família mora. Fomos passar o ano novo lá, isolados no mato, em uma casa sem wi-fi, cujo acesso era dificultado pela falta de luz e por um caminho de barro com buracos profundos que culminava em uma ladeira íngreme, excepcionalmente maltratada pelas chuvas periódicas; nos trancamos antes das 20h, para evitar os insetos, e brindamos com vinho em copos de plástico logo que deu 00h; uma vez recolhidos para dormir, peguei o celular e li o conto. Só consegui adormecer depois das 5h da manhã.

iv. 16 de março de 2021

Assisti ao filme, logo depois da consulta com minha analista. Lembro vividamente, ainda, da queimação nos olhos, na cara, de tanto chorar. Adormeci igualmente tarde.

v. 28 de março de 2021

Reitero uma obviedade: toda nova paixão provoca assombro, por mais que eu me esforce em prezar pela ternura. Mas é preferível o assombro à tranquilidade que por vezes confundo com indiferença. Os filmes não me ensinam a amar – me via estirada numa mesa de cozinha, assombrada, e entoei “astonishment and joy; astonishment and joy; astonishment and joy” da mesma forma. Mas tão raras quanto os filmes capazes de evocar, na mesma medida, o terror e o fascínio de se estar apaixonada são as paixões igualmente correspondidas.


Parte II: de quem fez

“Whatever calm I enjoy does not derive from the notion of a better world to come”

A ideia de escrever um conto sobre duas esposas de fazendeiros que se conectam em função de seu isolamento – físico, emocional, intelectual – ocorreu à Jim Shepard após encontrar em um caderno de despesas de um trabalhador rural a lamuriosa e avulsa anotação: “minha melhor amiga se mudou“. O conto, escrito na forma de um diário onde Abigail alterna o registro de atividades triviais com comentários sobre seu próprio estado de espírito, evoca a mesma inquietude e resignação. Somos informados de que Abigail e seu marido perderam a filha de 7 anos da mesma forma que somos informados de que as galinhas andam colocando poucos ovos, ou de que a água tem congelado sobre as batatas, o que também traduz a intelectualidade exacerbada e pouco exercida de uma protagonista confinada a seus pensamentos em uma fronteira remota dos Estados Unidos do século XIX. Todas as palavras escritas por Abigail estão marcadas por alguma melancolia naturalmente poética, mesmo aquelas que registram o enfado do mundo limitado pelas cercas de uma pequena fazenda, ou que tentam registrar a dor inefável do luto.

Isso até a chegada de Tallie, que, junto de seu marido, aluga a fazenda vizinha e passa a ser uma constante em seus dias. Ao contrário de Abigail, embora compartilhe de suas frustrações, Tallie é vibrante, primaveril, expansiva. Suas limitações não são cercas e designações geográficas – é o marido violento e sua incapacidade de enxergar uma vida pr’além da que leva com ele. O relacionamento das duas esbarra nesses mesmos limites, mas é o único espaço em que, amparadas uma pelo outra, se permitem ultrapassá-los. Quando à certa altura do filme, por exemplo, Abigail comenta com seu marido que deseja comprar um atlas e ele encara o desejo como frivolidade, quem acaba por presenteá-lo é Tallie; quando Tallie comenta com Abigail que tem medo de parir um filho, esta a conforta dizendo que estará presente para ajudá-la.

Filme e conto se apoiam no vazio para tratar do preenchimento, no segredo para tratar do grito, na dor para tratar da euforia e na clausura para reivindicar libertação.

E se no conto a presença de Tallie é um tanto mais elusiva, no filme ela ganha força, primeiro, ao ser personificada por Vanessa Kirby e, segundo, pela troca – constantemente interrompida – entre as atrizes. Contudo, mais do que explorar o aspecto do encanto inerente à paixão, a história quer se debruçar sobre o outro lado, aterrorizante, da ausência, do medo, da insaciabilidade do desejo – que cresce na falta e intensifica os encontros. Filme e conto se apoiam no vazio para tratar do preenchimento, no segredo para tratar do grito, na dor para tratar da euforia e na clausura para reivindicar libertação.

A mente e as palavras de Abigail, como referencial de potência, estão de tal forma enraizadas na narrativa que Jim Shepard e Ron Hansen, co-autor do roteiro, escolheram adaptar a história para as telas se apoiando majoritariamente em voice overs – o inimigo número um da maioria dos críticos e aficionados por cinema. De fato, o recurso foi retaliado pela maioria das resenhas, mas a voz de Katherine Waterston – intérprete da protagonista – introduzindo e fechando as cenas, escrutando novos e velhos sentimentos, ruminando a presença e a ausência de Tallie, embora redundante, é justamente o que nos amarra à introspecção quase desesperadora da personagem, e o que nos faz querer, se não resgatá-la, acompanhá-la em sua tormenta emocional.

Não à toa, a primeira imagem que Mona Fastvold visualizou para o filme foi a de Abigail indo resgatar seu marido durante uma tempestade de neve, amarrada à casa pela cintura a fim de não se perder ou ser carregada pela natureza enquanto a caminho do celeiro.

The World to Come é o segundo filme da diretora, que fez sua estreia em Sundance com The Sleepwalker (EUA, 2014) , 7 anos antes, e também colaborou no roteiro de Vox Lux (EUA, 2018), protagonizado por Natalie Portman e igualmente cutucado pela crítica. Apesar de não estar diretamente envolvida no roteiro adaptado, Mona teve liberdade suficiente para adequá-lo à sua própria versão da história, lutando para filmar em 35mm em uma região afastada da Romênia e se posicionando como co-autora ao lado de Jim Shepard e Ron Hansen.

A norueguesa radicada em Brooklyn, NY, faz parte, mesmo que por uma associação indireta, de um grupo de diretoras que têm se diferenciado pela capacidade de traduzir os horrores e os prazeres das mulheres em diferentes gêneros cinematográficos, mas sobretudo no terror, como é o caso de Rose Glass (Saint Maud), Prano Bailey-Bond (Censor) e Julia Ducournau (Raw, Titane), figurinhas marcadas nos festivais deste ano. Muitos ainda chegaram comparar o filme de Mona com o de outra especialista no tema – Retrato de Uma Jovem em Chamas (França, 2019), de Céline Sciamma -, ainda que meramente baseados em se tratar de um filme de época, mas a distância entre The World to Come e este parece muito maior, ainda que bem mais próximos se formos levar em conta gênero e linguagem cinematográfica.

No entanto, o maior diferencial de Mona Fastvold foi, justamente, compor um romance que pouco se parece com um, se assemelhando muito mais a – e deixando a sensação de – um filme de terror. Essa qualidade, reforçada pela trilha sonora original de Daniel Blumberg, cujas composições oscilam entre os extremos graves e agudos a depender da melancolia, pavor ou exultação em que as personagens estão imersas, se não for aplaudida pela execução – que não se exime de seus defeitos – merece, ao menos, ser reconhecida pela sua originalidade e por seu rigor artístico e, por que não?, geográfico.

Afinal, é precisamente nesse limiar, tão pouco explorado, que se instalam, cultivam e sobrevivem as paixões assombrosas.


The World to Come está disponível no streaming, pelo YouTube.

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