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Avessas à domesticidade: a (des)clausura em Novas cartas portuguesas, por Adriane Figueira

por Adriane Figueira
Arte: Trompe l'oeil. Board Partition with Letter Rack and Music Book de Cornelius Norbertus Gijsbrechts.

Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Publicou Revoada do dragão (Editora Patuá) em 2021, e Voragem (Editora Folheando) em 2022.


“Considerai a cláusula proposta, a desclausura, a exposição de
meninas na roda, paridas a esconsas da matriz de três.”

(Novas Cartas Portuguesas)

Por que um discurso proferido e arquitetado por uma mulher é sempre um discurso questionável? Como ocorre esse desprendimento, a “desclausura”? Questões inquietantes e que oferecem muitos caminhos e possibilidades. Estas reflexões nascem do afeto e da curiosidade. Como é possível fazer um livro que se pretende literário a três pares de mãos femininas e partindo de um documento poético inscrito na tradição — Cartas Portuguesas, de Mariana Alcoforado?

Não é possível pensar em escalas e conceitos fechados sobre os processos de escrita das mulheres que aqui são colocadas, não existe uma genealogia que possa ser seguida à risca, há textos chamados de cartas que não são cartas, há poemas, diálogos e narrativas. Há muitas mãos que movem a pena e outras que sobrevoam os textos iluminando as margens.

Pensemos em como as Novas Cartas Portuguesas (Dom Quixote, 2010) se (re)constroem no tempo de agora e de que modo a escritura feminina emana uma certa “novidade”, ou simplesmente oferece um outro olhar para as mesmas questões que se colocam para quem escreve. O corpo é um elemento diferencial nesse sentido, pois anatomicamente somos estranhas, diversas e somente o útero gera descendentes. Para se afastar dos tentáculos fálicos do discurso literário, é necessário sublinhar a diferença que marca os textos de autoria feminina.

É no discurso feminino que a água se amansa e se atormenta, são as águas fartas ou escassas que dão e tiram vidas. Quando nascemos para a existência estamos submersos em líquidos amnióticos, suprimos nossa sede com águas doces, mergulhamos e navegamos por águas salgadas, as chuvas semeiam e refrescam. Os ciclos hídricos nos cercam por todos os lados, vitais e mortais, necessários para que tudo cresça, se estabeleça e se transforme.

Ninguém me peça, tente, exija, que regresse à clausura dos outros

As três Marias, como ficaram e são conhecidas Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, escreveram juntas as Novas Cartas Portuguesas. Para além de uma polêmica autoral, esta obra deflagra novos sentidos, uma autonomia tomada por seis mãos femininas e postas à prova pelo regime ditatorial fascista em Portugal. O Estado Novo deu seus primeiros passos em 1926 com a Ditadura Nacional e se assentou em definitivo a partir de 1933 com a aprovação da nova Constituição portuguesa, perdurando até 1974 quando da Revolução de Abril. Uma breve digressão histórica para lançar luz ao sombrio passado de onde essas “novas cartas” insurgem.

As Marias, com obras publicadas em Portugal naquela altura, após alguns encontros e conversas, no ano de 1971, estabeleceram um pacto e com isto “instituíram” um novo modo de resistência e “desclausura” na escrita, no discurso literário. Tomando como horizonte e alargando os olhares, estas três mulheres resgataram as cinco cartas de Mariana Alcoforado — freira enclausurada no convento de Beja no século XVII — e sobrepuseram novas histórias, de novas e antigas mulheres, comuns e universais, para tratar de temas caros: maternidade, estupro, abandono, sexualidade, direitos, paixões, prisões, trabalho e mais: “De Mariana tirámos o mote, de nós mesmas o motivo, o mosto, a métrica dos dias.” (BARRENO; HORTA; COSTA, 2010, p. 99).

Elas se reuniram e escreveram as Novas Cartas partindo dos ideais de conjunção e sororidade, causando uma ruptura na estrutura discursiva/literária. Três mentes, três pares de mãos, três subjetividades para pensar outros lugares, para gerenciarem suas próprias vozes, para serem ouvidas e lidas. Estas mulheres inauguraram linhagens na Literatura, fissuraram os espaços literários dominados pelos homens e expuseram suas dores, vivências, aspirações, subvertendo o imposto, revirando funções e assumindo as rédeas das próprias escolhas.

Esta obra é um marco literário, pois nos mostra que a força do discurso também cresce em comunidade, no plural e que mulheres podem “inventar” e inverter os papéis de gênero, acendem quando se juntam para derrubar os muros visíveis e invisíveis colocados pelos donos do poder — os homens. Maria Isabel, Maria Teresa e Maria Velho emprestam seus nomes e se tornam mães e irmãs de todas as leitoras.

No anonimato compartilhado, na ousadia e até mesmo no cinismo, elas inscrevem suas marcas. Para além de um documento, quase um tratado feminino, talvez feminista, as Novas Cartas são um espaço de retorno e partida para a escrita literária e política: “Não quero nada de ninguém, nem de vós, e ainda que minta, esse é o peso da verdadeira figura posta em letras que é mister suportar. Não porque chamada, vocativamente destinada a que assim seja, não por escolha de ofício, a escrita não é ofício, mas porque esse é o sinal que toma meu furor que, sendo assim desacompanhado, mágoa não lhe chamarei nunca, meu furor da irrelevância e injusteza de quase todo o esforço ou coisa querida, e também isto… É o lugar do avesso e me descoso de tudo nele. É a colheita do joio…” (BARRENO; HORTA; COSTA, 2010, p. 286).

Na edição de Novas Cartas Portuguesas organizada e anotada pela poeta e professora Ana Luísa Amaral, há o resgate de dois textos de Maria de Lourdes Pintasilgo. No primeiro “pré-prefácio”, Pintasilgo coloca: “(…) as mulheres comprazem-se em si próprias, a sua paixão alimenta-se de si. Daí a reivindicação obsessiva do corpo como primeiro campo de batalha onde a revolta se manifesta.” (2010, p. 17). Neste excerto já podemos vislumbrar o excesso sobre o qual a própria autora nos adverte, há uma preocupação em explorar os domínios, as fronteiras e a disposição do corpo feminino em suportar. Não há, no entanto, uma romantização dos gestos, menos ainda uma vitimização das vozes. Há mulheres que assumem suas vontades e encaram firmes seus desejos e desígnios numa realidade crua, nua e poética. 

Existe uma tentativa, um movimento de compreensão do incompreensível. Lemos a obra e nos deparamos o tempo todo com a contradição dos termos, pois há ruídos diversos que desassossegam. Há uma busca que a escritura guia: escrita cumplicidade, igualdade-diferença, assim, em pares. Estas palavras e seus significados procuram por identidade, apesar de soarem contraditórias. Este estar presa, enclausurada, impede que se tenha autonomia e a escrita é esse lugar de liberdade negado às mulheres, mas que as Marias “sequestram” para si, para o sujeito-lírico que percorre multiplicado os escritos das Novas Cartas

No texto intitulado “Monólogo para mim a partir de Mariana, seguido de uma pequena carta”, há uma interlocução entre duas figuras estranhas, por isso mesmo, iguais (eu-Mariana, eu-mulher), no sentido de serem mulheres que transgrediram espaços em que estavam aprisionadas. Este texto coloca a escritura como corpo — corpo-voz-escrita — como passagem desse estado, uma espécie de fresta em que se pode olhar o fora para pensar o dentro e também o entorno, uma espécie de terceira via: “(…) só o corpo nos leva até os outros e as palavras.” (BARRENO; HORTA; COSTA, 2010, p. 144). São as palavras que emprenham, que matam e que ultrapassam a existência da mulher, de toda a humanidade: “(…) corpo de mulher com seu sangue e ciclos e que se rasga noutro corpo filho, mistério de vida e de morte, escândalo de um corpo demasiado próximo da natureza que o homem tenta dominar receando sempre suas vinganças, medo do corpo, corpo de perdição, medo de castração nele, homem erecto e construtor mas a quem só a mulher para os filhos, mulher marginalizada naquilo que o homem rejeita nas suas escolhas pragmáticas (…) toda a amizade de mulheres — tem um tom de uterino, de troca lenta, sanguinária e carente, de situação de princípio retomada.” (BARRENO; HORTA; COSTA, 2010, p. 113-114).


BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010.


Arte: Trompe l’oeil. Board Partition with Letter Rack and Music Book de Cornelius Norbertus Gijsbrechts.


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Mais sobre a obra

“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.

O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.

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