Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Revoada do dragão (Patuá, 2021) é seu primeiro livro.
“Há muito tempo eu esperava
por este dia brilhante, esta casa vazia.”
(Anna Akhmátova)
O tempo é sempre uma entidade inescapável que atravessa espaços e corpos? Um sopro invisível que nunca passa, não vai embora, mas desgasta o entorno? O tempo na poesia, o tempo da poesia, a memória, a ausência, o vazio. Eu sempre me perco nesses corredores entrevistos, os versos formam emaranhados obscuros, caóticos, líricos. Perguntas nada retóricas, pois que a poesia sempre parece partir de um tempo adiado, às vezes adiantado e até mesmo mítico, será?
Ingeborg Bachmann (1926-1973) foi uma escritora e poeta austríaca, doutora em filosofia que traçou sua escrita a partir da fronteira, da coalisão com o desconhecido inesgotável. O tempo adiado e outros poemas (Todavia, 2020) com seleção, tradução e posfácio assinados pela pesquisadora brasileira Claudia Cavalcanti, trouxe para o público nacional um panorama iluminado do legado poético de Bachmann.
Eu mergulho na contradição, rasgo bocas e olhos tateando mil reflexos dessa caixa espelhada em que me disperso inteira, desintegro e me converto em vidro, um milhão de fragmentos indefinidos. Há um jogo de palavras que confunde o leitor, a própria tradução do título da obra embaralhando os significados todos: Die gestundete Zeit no original em língua alemã, na França Le temps en sursis (o tempo suspenso), em Portugal O tempo aprazado e no Brasil O tempo adiado que é também o título do primeiro poema do livro, que integra o primeiro livro publicado por Bachmann em 1953.
Você deve estar se perguntando, qual o sentido de dar tantas voltas? Respondo: porque Crono, nessa leitura, se soma a Aión e Kairós, os três tempos: “o tempo adiado até nova ordem desponta no horizonte.” — o medido, o desmedido e a memória.
No meu primeiro e até agora único contato com a obra da autora, confesso o meu assombro diante de uma escrita tão profunda, cheia de simbolismos, de luz e sombra. Águas turvas que empurram os sonhos submersos, longínquos e que sangram em fluxo — passado-presente-futuro, um tempo tripartido. Estes apontamentos são o meu modo de celebrar e espalhar a palavra dessa mulher gigante e corajosa que persistentemente se manteve ativa e relevante num contexto tão brutal, mesquinho e misógino.
Claudia Cavalcanti escreve no posfácio da obra: “(…) por trás de cada verso, sinais de alguém que viveu seu tempo e se penitenciava por ele — e para quem era impossível escrever, portanto, alheia a esse pertencimento”. Quero escrever sobre esse pertencer que é também um lugar ausente, ou entre fronteiras — de corpos e línguas. A poeta é tomada pela vertigem, um turbilhonamento nos sentidos que não paralisa o verso, mas que o amplifica, como no poema Canções em fuga: “Dentro da tua boca é um ninho emplumado / para minha língua prestes a alçar voo.”. Um sujeito poético sempre em devir, na fugacidade do momento que se posterga e se evade, nesse movimento paradoxal de impossibilidade provável: “Dentro teus ossos são flautas claras, / das quais sei tirar sons encantados / que também cativarão a morte…”.
Bachmann viveu o horror da Segunda Grande Guerra (1937-1945), conviveu com as contradições familiares (seu pai foi adepto do partido nazista), se envolveu amorosamente com homens instáveis e esses relacionamentos influenciaram muito o seu modo de fazer literatura. Sua escritura se modificou a cada novo encontro, a cada nova paixão, dentro do contexto histórico de horror e morte: “A guerra não é mais declarada, / mas mantida. O inaudito / tornou-se ordinário. O herói / fica longe das lutas. O fraco / é deslocado para as zonas de combate.”.
Vale destacar, especialmente, a presença sempre vivaz do espectro do poeta romeno Paul Celan (1920-1970), com quem Ingeborg Bachmann cultivou uma paixão correspondida e a quem esteve conectada durante toda a sua vida. Celan — o judeu errante, o Banido; Bachmann — a Perdida, ambos fundidos, entrelaçados pelas teias da poesia, dos excessos e da loucura, num emaranhado bastante complexo, por vezes caótico. Há uma cronologia que organiza os eventos que decorreram na vida e transcorreram na obra, há uma intertextualidade que trafega ora declarada, ora às escuras nas linhas da palavra. Há um rigor na forma, um torpor que alinhava os versos em desenhos sofisticados, mas não vazios; ou vazios, mas não esvaziados.
A poeta em constante ensaio para o voo, a língua que se desprende do chão e do céu da boca, a mesma que sorri e entoa o canto melancólico, o enigma da palavra.
Paradoxos, antíteses, metáforas. Nos vemos diante da fórmula mágica que transforma o verbo, do labor poético que exige atenção redobrada, estudo. Atravessamos pontes sobre a noite fria em um porto morto, somos convocados pelo pássaro, pelas rosas e constelações todas, a poeta entoa o canto obscuro em dias brancos. Ela, idílica, ilhada e fugitiva: “Na minha terra primogênita, / no sul / a víbora saltou sobre mim / e o horror na luz.”.
O encontro com o compositor alemão Hans Werner Henze (1926-2012) proporcionou um mergulho ainda mais profundo na música e suas técnicas. Foi a partir deste acontecimento que a poeta produziu um libretti que conjurava literatura e música. Há, portanto, uma musicalidade na escrita de Inge — para usar um apelido carinhoso —, ela se lançou ao estudo da composição lírica, tomou emprestado métodos da música erudita para entoar outras melodias audíveis também aos olhos.
Orfeu sou eu, é você, o outro desconhecido, àquele que toca “a morte nas cordas da vida”, no poema Dizer o obscuro, a poeta se refere diretamente ao mito de Orfeu e Eurídice, uma alegoria que desenha uma colisão impossível, o extraordinário que remete aos (des)encontros com Paul Celan — talvez o mais significativo para a sua lírica, sua u-topografia: “A corda do silêncio / estendida sobre a onda de sangue, / agarrei teu coração soante.” ou “Mas assim como Orfeu conheço / a vida ao lado da morte, / e me parecem azuis / teus olhos fechados para sempre.”.
A poeta em constante ensaio para o voo, a língua que se desprende do chão e do céu da boca, a mesma que sorri e entoa o canto melancólico, o enigma da palavra. “Idolatrei um Algo e fui devota de um Nada”, proclama a poeta no poema Uma espécie de perda, a obra se fragmenta, o verso se contrai e apaga, mas o repouso é também movimento à espera que uma força oculta aja.
Um sol brilhante que cintila na terra lamacenta enxarcada de sangue, que encobre barbáries, enterra ossos, sonhos e homens. Bachmann renasce no poema, no olhar do leitor, do seu leitor que não cansa de contornar o tempo e as palavras: “Não sou um tecido, dessa matéria que cobriria tua nudez, sou da fusão de todas as matérias, e quero saltar em teus sentidos e em teu espírito como das veias de ouro na terra, e iluminar e abrilhantar a ti, quando o incêndio negro, tua mortalidade, irromper em ti.”.
Ficha técnica:
Foto de Anna Carolina Rizzon.
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Mais sobre a obra
“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.
O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.