Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Ed. Aboio, 2023). O livro está em pré-venda interativa até dia 24/03. Clique aqui para garantir 10% de desconto + frete grátis + seu nome em todos os exemplares da obra!
— …e teve pessoas que chegaram na delegacia jurando que tinham sido perseguidas por uma perna cabeluda.
— E nunca acharam o resto do corpo?
— Nunca. Só a perna mesmo.
O resto do corpo deve ser do Saci, penso pra mim. Seria bem a cara dele ficar assustando o povo nas ruas noturnas do Recife Antigo. Mas melhor não dizer nada; não quero queimar meu nome e virar a gringa que mistura as lendas ou coisa pior.
— E a mulher do lado? — pergunta um turista do grupo apontando para outra janela do casarão na praça do Arsenal, onde tem uma exibição das lendas urbanas recifenses.
— Ah, a Emparedada!
E aí o Bráulio, nosso guia no tour pelo centro da cidade, conta a história da moça que, grávida de um rapaz pobre, teria sido emparedada pelo próprio pai, um comerciante rico, para preservar a honra da família. História que depois virou romance de Carneiro Vilela e da qual não se sabe quanto do romance é inspirado na história e quanto da história é inspirada no romance.
— Muitas pessoas dizem que dá pra ouvir pedidos de socorro quando você passa na frente da casa e que, desde aquela época, não tem um negócio na Rua Nova que dê certo.
Eu, alemã de nascença e cética de pensamento, tenho lá minhas dúvidas sobre a causalidade dos fatos, embora acredite plenamente no feminicídio em si.
Mas cadê o gato do título, você deve estar se perguntando. Pois veja.
O gato apareceu dia desses aqui em casa. Estava deitado no quintal, quando minha enteada foi atrás de um barulhinho estranho, que ela achava vir de um pássaro, e descobriu o póbi miando copiosamente na grama. Menor do que minha mão, cheio de bichos fazendo a festa no pelo branquinho, sujo de excrementos, com uma bola de sangue coagulado no lugar de um olho e pus saindo do outro. Devia ter uma ou duas semanas de vida. Como minha enteada é uma boa pessoa, colocou o bichinho dentro de uma caixa com toalha, limpou o pelo com um pano úmido, consultou a veterinária, providenciou remédio e começou a alimentá-lo na mamadeira. Procuramos saber de alguma gata que tivesse dado à luz ultimamente aqui no condomínio, mas ninguém sabia de nada. Durante os passeios nos dias seguintes, ficávamos atentas a qualquer miado chamando por um filhote; nada. Até hoje é um mistério como o gatinho chegou até aqui, sem a mãe e naquele estado. Nem caminhar ele conseguia. No entanto, estava até indo bem. Não comia muito, mas comia e já estávamos quase começando a pensar que poderia sobreviver, quando, uma manhã, minha enteada foi dar a mamadeira e achou o póbi mortinho na sua caixa. Já estava frio e teso e não demoramos a enterrá-lo do outro lado da rua.
Agora imagine meu espanto quando, ao passar na frente do lugar, ouvi um miado copioso vindo de dentro do mato, feito gato emparedado. Voltei pra casa correndo como quem foge de uma perna cabeluda.
Arte: Houses by the ocean, de Lili Elbe.