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Ai, que guiça

por Renata Meffe
Fotografia: Pátio de casarão – Marc Ferrez (Acervo Instituto Moreira Salles).

Renata Meffe é jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora e agora cronista… Só coisa que dá dinheiro.


“Nada em excesso”. Desde a mais tenra – macia, branda, molinha – idade, adotei como lema esta máxima do Oráculo de Delfos. O conselho, inscrito no Templo de Apolo, em meio às encostas do monte Parnaso, na região central da Grécia, vinha acompanhado de outras diquinhas famosas, como o “Conhece-te a ti mesmo”. Conhecendo-me, o lema pareceu bastante adequado. “Nada” é justamente o que sempre mais gostei de fazer e, sem falsa modéstia, algo que faço muito bem.

A predisposição — e pós-disposição — que me falta em termos de verbos de ação (malhar, treinar, correr, optar pela escada ao invés do elevador), me sobra nos de pensamento. Conjugo o planejar como ninguém. Também o matutar, elucubrar, sonhar, ruminar… Eis que agora descubro que a ciência indica ser este um hábito dos mais salutares. Li num artigo da BBC, intitulado “Como o poder da mente pode te deixar mais forte, sem mexer um único músculo”, sobre robustas evidências de que somos capazes de melhorar nossa própria robustez apenas com a força do pensamento. Pesquisas mostram que a chamada “imagética motora”, técnica que consiste na representação mental de uma atividade física, faz com que baste imaginar que estamos, por exemplo, levantando peso, para usufruir dos efeitos de levantar peso. Com esta notícia, a vida fica mais leve. Além de discípula do Oráculo de Delfos, acabo de me tornar seguidora de Helen O’Shea, a neurocientista cognitiva da Universidade de Dublin responsável pelos auspiciosos estudos.

Não restrinjo a aplicação do mandamento ¨Nada em excesso” apenas ao âmbito dos esforços físicos. Quando bate o impulso de realização de qualquer atividade, lembro da sabedoria oracular e, agora também amparada pela ciência moderna, me limito a preparar, no bloco de notas do celular, a lista do passo a passo necessário para levá-la a cabo. Não me ocupo, só me preocupo. Engano o cérebro sedento de realizações e vou colecionando afazeres, sem nunca chegar a nenhum feito. Já tenho ensaios esboçados sobre os mais variados assuntos: da troca de resistência de chuveiros 220V às etapas do aprendizado de mandarim. De técnicas de cozimento da cebola roxa madura ao caminho para converter-me em uma ninja. Ensaios que jamais culminarão num dia de estreia. 

Tal inclinação  – inclinação é uma delícia, especialmente aquela total, como a dos ônibus leito – me afasta de uma vida ativa. Entretanto, de vez em quando, nado. Atenta à possibilidade de que outras interpretações para as três palavrinhas “Nada em excesso” estivessem me escapando, achei por bem considerar que o aforismo pudesse ser o oráculo nos exortando a movimentos frenéticos dentro d’água. Ambos os sentidos não seriam tão contraditórios. A natação é um esporte aquático que praticamos deitados. O nadador conta com a vantagem de, na horizontal e na água, quase escapar imune aos efeitos da gravidade. 

A gravidade talvez seja o mais grave obstáculo àqueles empenhados na acepção clássica do “Nada em excesso”. A condenação a que todos estamos submetidos, de lutar continuamente contra uma força de tanta magnitude, inviabiliza o nada pleno e total. Minha relação com ela é ambígua: de admiração e horror. Sem a força gravitacional não haveria a bela lua lá no céu, desculpa ideal para desfrutar de noites contemplativas, reclinada na rede, praticando meu excesso de nada. Não ignoro, porém, que é a danada da gravidade a responsável por meus peitos cada dia mais caídos. Fiel ao lema, claro que não movo nem um mindinho para adiar esta queda. No máximo, imagino. Helen O´Shea é minha pastora e o peito empinado não me faltará.

Mas, admito, nem sempre é fácil lidar com a sensação de dever não cumprido. A pressão do capitalismo pelo agir prejudica quem só cogita. A pressão na coluna cervical após horas e horas deitada, idem. Além do mais, trair assim continuamente os próprios desejos acaba deixando uma ou outra sequelinha psíquica. O que me dá forças para (não) seguir é a certeza de que graças à inação gerei menos pegadas, inclusive de carbono, contribuição que atesta os bons frutos do ensinamento de Delfos. Também me sinto preparada para desafios futuros. Embrenhada em minha cabeça, já vivo numa realidade virtual bem antes de isso ser modinha, estando de boa com os metaversos que devem substituir o mundo real. É, parece que o oráculo sabia mesmo dar conselhos.


Fotografia: Pátio de casarão – Marc Ferrez (Acervo Instituto Moreira Salles).

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