• 0

    Frete grátis a partir de R$ 110

Círculo vicioso

por Pablo Ernandes
Asset 15

A pior das prisões é a língua. Mesmo que você se isole hoje e decida não falar mais com ninguém, você ainda vai pensar em um idioma.

Muitas vezes eu (e acredito que boa parte dos estudantes de linguística que não sejam prescritivistas [1]) me vejo impressionado quanto à ferocidade com a qual os falantes defendem alguma variação irrisória do idioma. “Biscoito” e “bolacha”, “tênis” e “sapato”, “moral” e “ética”, “lápis” (a madeira que escreve com grafite dentro) “lapiseira” (o mecanismo que funciona com pedaços pré-determinados de grafite de acordo com o calibre) e “apontador” (câmara com uma lâmina pra deixar a ponta do lápis fina).

A princípio, o que parece ser só um rápido jogo de poder sobre “A minha visão é certa pois foi ela que eu aprendi primeiro” salta aos olhos como uma distorção da realidade usando o idioma como ferramenta. Esse fenômeno é estudado tanto num mesmo idioma quanto entre idiomas. Exemplo: quem se recusa a reconhecer “queso” como “queijo”, pois, afinal de contas, aprendeu “cheese” – e se você está nos Estados Unidos, fale inglês!

No momento, os preconceitos linguísticos serão usados especificamente para focar em como mudar o entendimento do falante ou do ouvinte sobre a realidade, tomando o conceito como sendo tocável ou não. Não só sobre os casos supracitados, pois eles eram preâmbulo para o ponto.

Imagine palavras que todos aprendem com o mesmo nome. Porém seus conceitos variam a partir de julgamentos subjetivos e experiências de cada um. Tomemos como exemplo o amor, que é um tema que eu pretendo escrever sobre algum dia. Para uns, o amor é a completa doação de si para o outro, vinculando ambos para a vida inteira e não permitindo que haja conexão, ou que esse sentimento seja nutrido por mais ninguém. Para outros, é um sentimento tão genuíno e poderoso que você pode amar a todos (com mais ou menos intensidade) e não necessariamente está correlacionado com deter a posse da minha pessoa amada, e você que ache a sua.

Outro bom exemplo é o respeito em situações interpessoais. Há quem diga que o respeito é que você se suprima e deixe que quem possui a prioridade (hierárquica, social, etária) se imponha. E também quem creia que respeito é a coexistência sem a necessidade do apagamento de outrem.

Em meio a predeterminações e preconceitos, se encontram os filósofos, que, ao perguntarem o que significa uma palavra, quebram o conforto de poder se prender somente àquela definição, criando a necessidade de usar outros elementos para passar aquela mensagem, e, desta forma, descobrir mais sobre o que ela quer dizer. Como dividir amor entre Ágape, Eros e Philos, ou explicar a diferença entre “falar de” e “falar sobre” [2]. Trazendo nova luz sobre algo que já parecia óbvio para os que conheciam o termo.

Minha reflexão recai sobre um debate muitas vezes repetido em aulas, e em uma frase que não é muito difícil de encontrar em estudos linguísticos: Em que ponto a língua para de ser um instrumento para que ilustremos o mundo ao nosso redor e passa a ser um instrumento que tolhe a visão do mundo ao nosso redor?

É muito belo e fácil falar de conceitos como amor, respeito, lapiseira e biscoito quando se tenta dar um panorama dessa situação. Mas o leitor mais esperto do que eu provavelmente já deve ter se dado conta de onde se pode chegar ensinando coisas sobre amor e respeito. Ou, mais além, os problemas causados quando alguém em quem um grupo toma como fonte confiável de reflexão para mudar os termos em sua mente. Quando um líder religioso diz que é desrespeitoso que seu filho curse ensino superior. Quando um amigo diz que tal ato é evidentemente uma demonstração de desrespeito da sua pessoa amada, e que você, como ser íntegro, não deve tolerar este tipo de situação. Ou quando um líder de influência política e social convence seus seguidores de que os problemas da nação e os empaques do progresso estão concentrados em tais etnias e costumes. Que “isso não é coisa de homem” ou “uma pessoa normal não faria isso”

O que é amar? Respeitar? Ser normal? Ser homem? Quão livre somos tendo em mente as mesmas conexões que os que correlatam ideias que não concordamos?

Uma das máximas sobre estudar idiomas é que os falantes fazem a língua. Então, é impossível dissociar o organismo social do linguístico – uma vez que se você falar “berilo” em Recife, você está pedindo grampo de cabelo, enquanto que em São Paulo, você está perguntando se seu ouvinte já teve a infelicidade de descobrir que seu relacionamento tinha sido aberto sem seu consentimento.

Como mostra o livro Marcelo martelo marmelo [3], não adianta você sozinho refletir sobre os termos e criar novos vocábulos sem antes diluí-los entre os ouvintes, pois, ao não o fazer, você só vai causar estranhamento, irritação e potenciais incêndios.

Então, até que ponto os impulsos elétricos no nosso cérebro conseguem ser interpretados de forma tranquila, e quantos deles são barrados por considerações que nós construímos? Até que parte o psicológico pode amenizar uma dor física? E até que ponto o físico pode sofrer com uma perturbação psicológica? Pare pra pensar: a forma como você vê o mundo atualmente, como você lê esse texto, o aparelho que você usa para isso, a rede por onde você o viu ser publicado e seus usuários, as pessoas que lhe mandam mensagens e você freneticamente arrasta pro lado, incrédulo por ler um texto tão prolixo. Seus sentimentos mais profundos de raiva, frustração, felicidade, tristeza, tesão. Você pode senti-los ou você tende a reprimi-los? Todas essas interações são respondidas com respostas que você obteve em introspecção ou são apenas moldes que você recebeu ao longo da vida e continua usando?

E em relação ao uso desses moldes (que todos nós temos) até onde nós podemos mudar e de fato pensar em algo novo, em formar um novo sistema que não só esteja aberto a ensinar a refletir, mas que também não menospreze os que não veem necessidade de rever suas convicções?

E ainda assim os que não veem necessidade caso tenham em mente alguma ideia problemática como: devem morrer todos que não sigam alguma norma; ou: não tem direito às condições básicas de vida aqueles que não concordam comigo. Essa pessoa pode ser livre e inferir no conceito geral? E se não puder? Tirar essa opção dela seria manutenir a tolerância através de não tolerar o intolerável [4] ou seria apenas arbitrariamente decidir o que os falantes podem ou não pensar? Caso o ensino alcançasse a todos, não deveriam todos aprender a lidar com pensamentos construtivos e destrutivos? Mas e esses conceitos, partem de onde? Construtivo para quem? Destrutivo de quê? Quão livre somos individualmente se dependermos do grupo para obter nossos parâmetros de realidade?

Se para Saussure[5] a língua é como um jogo de xadrez sendo forma e não substância, nossos movimentos estão pré-determinados para sempre até que consigamos mudar o jogo inteiro?

***

[1] – Prescritivismo é uma corrente linguística que desconsidera, reprime e condena alterações linguísticas, sejam elas quais forem. Na ótica prescritivista, as variantes linguísticas não são interpretadas como progressão orgânica do idioma, mas como erros que devem ser corrigidos e erradicados. 

[2] – Vídeo de Mário Sérgio Cortella em entrevista ao The Noite, no qual ele discorre que a diferença entre “falar de” é o local de fala que alguém que possui conhecimento sobre um assunto pode falar, enquanto “falar sobre” seria o local de fala que apenas quem possui vivência no assunto pode expressar. 

[3] – O livro “Marcelo, martelo, marmelo” de Ruth Rocha apresenta, de forma cômica, as desventuras de um menino, Marcelo, e seu descontentamento com os nomes determinados para os objetos e conceitos ao seu redor, e passa a renomeá-los a seu bel prazer. Tornando-se progressivamente mais incompreensível.

[4] – O filósofo Karl Popper, em 1945, apresenta a linha de raciocínio do paradoxo da tolerância em seu livro, “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”. No qual aponta: 

“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemos-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, mas comecemos por denunciar todos os argumentos; eles podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas. Devemos-nos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante.

[5] – Ferdinand de Saussure aponta, entre suas diversas dicotomias e ensinamentos passados para o livro “Curso Geral de Linguística” que a língua é forma e não substância. Por ser muito difícil explicar um conceito sobre idiomas usando o próprio idioma, ele propõe uma ilustração onde falar seria um jogo de xadrez, e as palavras seriam as peças. Seis e meia dúzia teriam, então, o mesmo papel no tabuleiro, assim como uma peça de madeira, vidro ou uma tampinha de garrafa exerceriam o papel que lhe é esperado no tabuleiro.


Pablo Ernandes é linguista de sonhos altos, competidor um pouco patológico e tenta fazer os outros rirem como mecanismo de defesa e socialização.

Leave Your Comment

faz um PIX!

Caso dê erro na leitura do QRCode, nossa chave PIX é editora@aboio.com.br

DIAS :
HORAS :
MINUTOS :
SEGUNDOS

— pré-venda no ar! —

Literatura nórdica
10% Off