SOBRE
Narradores e personagens não confiáveis pululam na literatura. A habilidade de uma escritora em criar subjetividades complexas – duvidosas, transitórias, improváveis – já seria, por si só, bom augúrio para um romance. Escrever boas histórias e personagens, afinal, responde por grande parte da ficção. Mas, para autoras como Odylia Almacave, não é o bastante.
Em Afiada e Irradiante, a escritora faz mais do que escrever; Odylia inscreve a inconstância e a indefinição da protagonista na própria tessitura textual. Experimentando na forma, diz as coisas muito mais pela prosódia do que pela apresentação de qualquer tema mais ou menos urgente – e o que seria a urgência, afinal? O romance, relativamente pequeno, ganha em densidade: o universo feminino, individual e coletivo, é construído por frases e ritmos que, no manejo da palavra, desnudam nossas dificuldades de comunicação. Talvez aí a urgência.
ODYLIA ALMACAVE
Odylia Almacave nasceu em Goiânia e vive em San Diego. Publicou Seus ferimentos têm um nome (Paraquedas, 2024); Afiada e Irradiante é seu primeiro romance.
TRECHO
Eu nunca quis tanto que minha goela produzisse fogo. Voaria derretendo todas as imagens eclesiásticas, incineraria as cabeças de todos os discípulos de Jesus, mas ruborizaria só um pouquinho o couro do bebê chupando o mamilo teso de Maria. Jesus cresceria calvo: a testa, as têmporas, seus templos incendiados por uma mulher-dragão. Guiado por um temor oriundo da infância, no deserto seria arrebatado pela força do subconsciente; não acenderia fogueira. Nosso bebê crescido morrendo de hipotermia; minha história e a desse pássaro completamente diferentes. E honestamente — cochicham os vendedores, os zeladores, os seguranças, todos os bombeiros, as crianças, e principalmente os caçadores. Não há saída, é o fim do mundo isso aqui.
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