SOBRE
Nem sempre a violência é visível. Talvez tenhamos experimentado as primeiras e fundantes antes da palavra. Antonio Pokrywiecki não foge das perturbações de seus personagens, sem incidir no espetáculo empurrado pela linguagem.
Em sua estreia na contística, Antonio Pokrywiecki percorre — com propósito e, quando quer, com maldade — a ambiguidade dos signos do medo e do trauma. A imprevisibilidade que assombra pode ser tão assustadora quanto os próprios monstros. E os monstros também não fogem. Mas podem ser provisórios.
LEITURAS
Com extrema paciência, Antonio Pokrywiecki extrai do leitor suas prevenções e medos. Com o método e a lisura do dentista realizando seu trabalho num paciente sentado na cadeira elétrica. — Joca Reiners Terron
ANTONIO POKRYWIECKI
Antonio Pokrywiecki nasceu Santa Catarina, é autor do romance Tua roupa em outros quartos (Editora Patuá, 2017), e publicou contos nas antologias 2020, o ano que não começou (Editora Reformatório, 2021), Antologia – Contos (Selo Off Flip, 2022) e Realidades Estilhaçadas (Editora Mondru, 2023).
TRECHO
O homem acorda e sai para comprar uma torta. Escolhe a torta de maçã, como de costume. O cachorro do vizinho rosna para ele no elevador. Quer roubar a torta, o cachorro. O vizinho sorri sem mostrar os dentes — um sorriso que desaparece em instantes. Sorriso de gente branca, pensa o homem, que também é branco. Passa por sua cabeça que o vizinho queira a torta para si.
É para minha companheira, diz ao cachorro e ao vizinho.
Prepara o café para ela. Assa torradas, para que ela coma antes da torta. Quando ver a torta, a mulher ficará contente, embora não surpresa. Às vezes pensa em surpreendê-la, mas teme que isso não a deixe contente.
Não sabe como contar a ela sobre o dente que caiu durante a noite. Um incisivo lateral que há muito tempo lhe causava uma série de aborrecimentos. Um dente que nunca lhe deu nada de bom. O homem não está aliviado, e a mulher não ficará contente. Talvez isso sim a surpreenda.
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