SOBRE
“Precisaria de uma paisagem impossível”, diz a personagem na narrativa “Crise”. Personagem que talvez não exista como personagem, e sim como registro de pensamento, voz que ensaia para fazer surgir diante de si as próprias ideias que ainda não são. Algo impossível a ponto de precisar ser desenhado como paisagem para existir. É nessa impossibilidade concretizada que repousa a força de Notas rotas.
Paula Luersen brinca com formas. Passeia por gêneros breves e faz de registros simplórios itinerários para narrativas, explícitas ou sugeridas, que revitalizam um certo inconsciente cronístico, um certo desejo de comentar a história que se conta. Se é que podemos categorizar os textos deste livro, não será errado vê-los como microcontos – não pelo espaço reduzido, não pela brevidade, meramente, mas pela maximização silenciosa, durante a leitura, do que pensávamos muito pequeno.
Paula Luersen
Paula Luersen (1988) nasceu em Três de Maio/RS. Vive em Salvador-BA. É autora de Variações de um círculo (Documenta, 2022). Em 2015 e 2016, integrou o grupo de cronistas Santa Sede, vencedor do Prêmio da Associação Gaúcha de Escritores com A Persistência do Amor (Buqui, 2016). Notas rotas (Cachalote, 2024) é seu primeiro livro de microcontos.
Trecho
Do conto “A falha”
Júlia tinha os dentes mal dispostos na arcada, o que acreditava que não mudaria. Anos de tratamentos dentários e vários tipos de aparelhos para, num deslize do dentista que lhe tirou o contensor, tudo voltar à desarrumação que agora julgava sua. A mãe insistia para que tratasse aquela falha perceptível em qualquer sorriso.
Mas não gostava da ideia de voltar tudo ao lugar. Talvez organizar as coisas fizesse Júlia perder a capacidade de ver os seres arredios e silenciosos que se moviam pela casa. Uma lagartixa que surgia em torno de seus pés, enquanto lia no sofá. Insetos que descobria em cantos escondidos dos móveis ou adivinhava dentro das paredes.
Avaliações
Não há avaliações ainda.