Em Pesadelo Tropical, primeiro romance de Marcos Vinícius Almeida, o passado se mistura ao presente num mosaico em que fotografias, obras de artes e recortes de mapa dialogam com cavaleiros barrocos vagando por um Brasil esquecido no tempo e amaldiçoado por Deus.
SOBRE PESADELO TROPICAL
Em 1803, quatro mercenários são contratados pela Coroa Portuguesa para ir ao Mato Grosso em busca de uma aliança com os Guaicurus. Guiados por um gigante albino chamado Cigano, eles devem se unir aos indígenas cavaleiros para atacar a vila de párias construída pelo justiceiro Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, na Serra da Mantiqueira. O relato dessa peregrinação sangrenta é feito por um dos quatro mercenários, um escriba. No entanto, ela é apenas o começo de uma misteriosa trama que extrapola as páginas do próprio livro.
De um lado, uma perseguição sangrenta e sem misericórdia. De outro, a história de um homem escrevendo uma ficção baseada na caçada a Januário.
AUTOR
Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e mestre em Literatura e Crítica Literária (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Possui trabalhos publicados em revistas e jornais, como Ilustríssima, Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Cult. Foi um dos laureados no III Prêmio UFES de Literatura, em 2015, na categoria antologia e no I Prêmio UFES de Literatura, em 2010, na categoria contos. É autor do volume de contos Paisagem interior (Penalux, 2017). Pesadelo Tropical é seu primeiro romance.
TRECHO
Eles não vieram de imediato. O sol foi embora e naquela noite aguardamos em silêncio o ataque derradeiro, um ataque sempre postergado. Ouvíamos apenas a respiração uns dos outros e dos nossos cavalos que às vezes fungavam e enfiavam as cabeças no capim baixo e seco e mastigavam e batiam o rabo contra o lombo. No meio da madrugada, surgiu uma legião de lobos atraídos pelo cheiro de carne fresca. Eles uivaram e desceram as escarpas mais à frente e rosnaram e uivaram mais forte. O capitão-do-mato cego acendeu uma tocha para mantê-los a uma distância segura. E os olhos cinzentos daquelas pequenas bestas reluziram na escuridão como velas de uma luz gris e enevoada, velas que guiassem alguma procissão demoníaca. Eram doze, talvez mais. Preparamos nossas armas, mas o Cigano deu ordens para não atirar. Ouvimos os animais estraçalhando e mastigando os cadáveres frescos dos dois estranhos e também dos cavalos na escuridão. E com aqueles barulhos bestiais eu podia imaginá-los brigando entre si e trocando mordidas e rosnando e uivando e depois voltando a descarnar aqueles corpos com suas mandíbulas brancas besuntadas de sangue. Satisfeitos, eles se afastaram. Os uivos ficaram cada vez mais distantes até desaparecerem engolidos pelo silêncio. Ao nascer daquele dia quente e úmido, as carcaças dos corpos iam surgindo desfiguradas à medida que as sombras desapareciam. Moisés balbuciava coisas incompreensíveis. Talvez já estivesse enlouquecendo. Talvez estivéssemos todos meio loucos diante da asfixiante morte anunciada. Abutres voavam em círculos no céu e um deles pousou à beira da cava e depois mais outro. Então desceram num salto e enfiaram suas cabeças entre as moscas, entre as vísceras dilaceradas dos cavalos. O capitão-do-mato cego de um olho caminhou até eles e os espantou, mas depois eles voltaram e ele os espantou de novo. Era uma luta vã. Os círculos que aqueles animais desenhavam no céu forneciam ao bando do Sabará nossa localização. Mair se sentou ao meu lado e seu semblante era sério e sem esperanças, mas também de certa forma pacífico e tranquilo.
Estou esperando, ele disse. Um milagre. Uma daquelas diabruras do Cigano.
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