O fim de Cobralina

por Leonardo Zeine
Foto de Leopoldo Cavalcante para ilustrar o conto "O fim de Cobralina", de Leonardo Zeine.

Leonardo Zeine é mestre em linguística pela USP e doutorando em Filosofia da Linguagem pelo Max Planck Institute, em Frankfurt.


Conta-se que existiu um pequeno vilarejo, de nome Cobralina, que, quase esquecido, quase que silenciado, possuía as regras de organização social mais peculiares de que se tem notícia. Conta-se, também, que estas regras, por mais absurdas que possam parecer a nós, desavisados citadinos, foram criadas por assim dizer, de forma excepcionalmente natural, sem que nenhum morador pudesse dizer quando ou sob quais circunstâncias começara-se a viver assim. 

Existiam, em Cobralina, quatro tipos de gente, e quatro tipos apenas. Eram eles: os religiosos da Santa Igreja, os militares do Grande Exército, as Crianças e os Mendigos. Os três primeiros grupos plantavam sua própria comida e os mendigos, pelo que se sabe, mendigavam um pouco da de cada um. As demais trocas eram baseadas em um escambo circular: os religiosos ofereciam salvação, normalmente requerida pelos militares. Os militares, por sua vez, ofereciam ordem, normalmente requerida pelas crianças. As Crianças ofereciam novidade, normalmente requerida pelos Mendigos. E os Mendigos, por fim, ofereciam longos concertos musicais no coreto da cidade, normalmente frequentados por todos, exceto os mais carolas. As Crianças, por volta dos dezesseis ou dezessete anos, a depender de cada caso, decidiam se tornariam-se Mendigos ou militares, nunca religiosos. Para aderir à Santa Igreja, era preciso esperar até os trinta e três anos e, então, participar de um processo seletivo baseado puramente em vocação. Em épocas excepcionais, alguns Mendigos selecionados pegavam em armas e outros militares, quando a vida ficava dura demais, tornavam-se Mendigos. 

Uma vez por mês, e uma vez apenas, os grupos discutiam, na praça central, temas de interesse geral, cada um brigando pelo direito dos seus. E em mais de cem anos em que a cidade viveu desta maneira, nenhuma morte política foi contabilizada. As demais corriam o curso comum, sendo as mais frequentes, em ordem decrescente, a morte morrida, a morte matada, as picadas de cobra e o feitiço de mau-olhado.

Não havia escolas nem hospitais, pois não havia professores nem médicos. Se fosse o caso de um indivíduo ser alfabetizado, provavelmente tratava-se de um religioso. Os poucos partos eram dever dos militares e, uma vez parido, o mais novo, recebido pelas Crianças e ovacionado pelos Mendigos, era levado, em cortejo, à vila onde moraria pelos próximos anos. 

Acontece que a mudança de ânimo de cidades inteiras não pode ser premeditada e mesmo os tecidos sociais mais harmoniosos, como costumava ser o vilarejo de Cobralina, podem ser afetados pelo decorrer do tempo. 

Talvez devido a mínimos desaforos que vão se acumulando ao longo do tempo e que desgastam a relação, como se diz, ou talvez pela sobrecarga espiritual causada pelo excesso de feitiços de mau-olhado, que de fato vinham se tornando quase que banais, nosso pequeno vilarejo entrou em crise. 

Os militares do Grande Exército, entediados e com muito tempo livre, investiram toda a sua ânsia de vida num cultivo desvairado de poesia. Queriam transformar o quartel numa espécie de torre de babel, atingir os céus por meio das mais verdadeiras aspirações artísticas e cultivar, deliberadamente, o mundo do sonho na Terra. Os religiosos, contrariados, resolveram, em revanche, pecar: em poucos meses, a Igreja havia se tornado o pior dos muquifos, onde tudo era liberado, mas desde que fosse feito com o máximo desrespeito às leis divinas. Quando não, o Frade interrompia a bandalheira que se estivesse fazendo no momento e dava ordens verdadeiramente depravadas aos que, em suas palavras, “não se esforçaram o bastante”. As Crianças, atordoadas, embebedavam-se o dia todo: corriam nuas pela cidade, topando com a testa em muros, placas, invadindo os currais e montando em porcos. Os Mendigos viraram Preguiçosos e, sem a força necessária para exercer a mendicância, minguavam como fantasmas, cantando o tempo todo e assombrando quem cruzava o passeio público. 

Explodiram, assim, os casos de morte por susto, difteria, mal do engasgo, feridas variadas, cancro, delírios hepáticos, pescoço quebrado, cólera, falência muscular, falência geral dos órgãos, encosto e macumba-braba; doenças que até então eram desconhecidas na região. Até as cobras pareciam ter se assustado com a morrinha enferma que a cidade expelia e esperavam, distantes, a resolução do conflito. Os concertos musicais aconteciam, agora, quase todo dia e o torpor prolongado, aliado à ressaca intensa, acabou gerando um sentimento geral de flutuação, de esquecimento, como se a própria cidade, os grupos e as regras sociais nem pudessem existir em primeiro lugar. 

Sob esta condição, a reunião mensal de outubro daquele ano, marcada, sem que ninguém atentasse, para o Dia do Servidor Público, glorioso 28 de outubro, ponto facultativo em todo o território nacional, foi palco, assim conta a história, do apoteótico fim de Cobralina. 

Chegada a multidão na praça para o ajuntamento democrático, num espaço de meia hora todos os crimes do mundo já haviam sido cometidos. Contam as boas bocas que uma das crianças, completamente bêbada, entrou por debaixo das vestes de uma freira indecente, ao passo que um militar apreciador da filosofia franciscana dirigiu-se a eles em sanguinária revolta. Dada a primeira faísca, assim o milagre se fez em nome de todos. Quem se dignou a subir no púlpito, naquele feriado do dia 28 de outubro, levou garrafadas, socos e pontapés de uma multidão em estado de bala. Promulgaram-se leis de cunho internacional, foram decretadas greves de duração infinita, o Carnaval foi alterado para novembro e o ano diminuído para 100 dias. No meio da desordem, um padre deu à luz a uma Mendiga, que já nasceu com roupinhas desgastadas e clara aptidão aos truques de sinal. Um grupo de crianças construiu uma linha de catapultas em que lançavam merda, esterco e frutas podres por todos os lados e à la vontê. Uma freira explodiu a própria perna tentando acender um cigarrinho de artista, que trocou por pele de cordeiro com um militar da brigada. Este queria escrever, e da forma mais rebuscada possível, os dez mandamentos da nova escola filosófica que havia fundado (infelizmente, o nome da escola acabou se perdendo no tempo). 

Em um dado momento, e de fato um dos mais interessantes deste dia, segundo a maioria dos historiadores, os cidadãos de Cobralina – sem saber como nem por quê – assistiam, em consternadíssimo silêncio, a uma apresentação de marionetes, intitulada A Verdade do Rabo. A tal peça nunca mais pode ser reencenada, ainda que haja hoje cópias do texto guardados em bibliotecas clandestinas do Rio de Janeiro; isso dada à demoníaca crueldade com que as vozes de brinquedo bradaram os piores xingamentos já ouvidos em toda a história da humanidade, tudo por uma história que não fazia o menor sentido e que irritou de maneira convulsiva os espectadores. Passados os agradecimentos das quinze marionetes capengas e esquálidas, os atores foram devidamente queimados em fogueiras de cedro. O silêncio foi quebrado sem constrangimento e logo após a cerimônia incendiária, que não durou mais de cinco minutos, já estavam todos os nobres cidadãos urrando, empunhando facas e ceifando cabeças. Lutaram eles próprios em rinhas humanas, sob apostas que iam de terrenos baldios a órgãos de irmãos. Havia mendigos sobre os ombros de crianças, padres lançando feitiços abissais a torto e a direito e militares contando as mais repugnantes histórias a quem quisesse ouvir, a fim de aumentar, um pouquinho que fosse, a intensidade da coisa toda. 

À meia-noite, estavam todos exaustos, deleitados ou mortos. À meia-noite e dois, uma chuva torrencial arrasou finalmente o que restava da cidade. Em segundos, a cidade estava toda debaixo d’água. 

O coreto, com os instrumentos dos Mendigos cantores, foi arrastado pelo rio volumoso que se formou na avenida central. As Crianças foram as primeiras a serem levadas, seja pelo tamanho reduzido, seja pelo altíssimo nível alcoólico. Os religiosos, arrependidos com o rumo que suas ações tomaram, bateram em retirada para a Santa Igreja e foram eletrocutados por uma série de raios que caíram sobre a cruz externa, apontada para o céu. Os militares, coitados, depois de tanto tempo se dedicando às virtudes do espírito, perderam a vitalidade e alguns decidiram, mesmo em tamanho desespero, crer na imortalidade da alma. Viram beleza no Fim e, liricamente, encantaram-se. Alguns deles ainda registraram o acontecimento das mais variadas formas: por escrito, telepatia ou magia negra, mas de toda forma, em pouco tempo, todos logo afogaram-se. Os Mendigos dançaram e celebraram a chuva, voltando às suas origens. Cantaram uma única e arrastada melodia durante o curso caudaloso do rio que levara a cidade embora. Entre Angra dos Reis e Barra Grande, assim se conta, precisamente a 44.42135° ao sul e 23.06612° a oeste, ela desembocou no oceano. 

Quem hoje passar por onde ficava Cobralina não suspeitará do que aconteceu. Sem tanta criatividade humana posta à prova, a terra floresceu e a mata acabou fechando-se por completo. A história peculiar da cidade acabou se camuflando num interior despovoado e os detalhes ficaram restritos apenas aos mais interessados. Só um grande observador verá que, num certo vale entre morros verdes, muito verdes, talvez especialmente verdes aos mais apaixonados, perdido entre estradas e fazendas ermas, existe um pequeno pedaço de terra sobre o qual voam muitos gaviões, que nunca descem ao chão, mas que vagam em círculos infinitos no ar com olhos vidrados para baixo, cheios de medo e fome.


Foto de Leopoldo Cavalcante.

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