Ubiratan Costa é poeta e compositor natural de Goiânia – GO. É formado em Composição pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e autor do livro As Notações do Azul (2021, edição do autor). Integra o grupo Música Íntima, fundado em 2017, e que reúne jovens compositores residentes em Goiânia, junto aos quais lançou o álbum Jackhes, meus amores (2019) e o EP Reverdecente (2020), disponíveis nas plataformas de streaming de música.
Imitação da crônica
Ela eu sei que me quisera vender,
certa vez, ovos de Páscoa caseiros
que eu fantasiaria, por gosto,
serem feitos à tarde.
E dela eu sei que,
não fosse agora a chuva,
é certo que ao seu portão se veria,
como sempre, em cartolina:
VENDE-SE GELADINHO
ou outra coisa anunciada à mão,
cursivamente, em canetinhas coloridas.
Qualquer outra coisa,
mas feita à tarde, é claro
(assim arbitro, assim fantasio),
alguma outra iguaria que eu levasse
no engano de auscultar
– nos sulcos do chocolate,
na calda da fruta,
ou no crocante da castanha –
o tilintar da louça que se lava após o almoço,
uma conversa de cozinha,
um café que goteja no coador
e outros rumores de uma tarde inventada.
Mas o que dela
de fato eu ouvi
foi sem preparo,
não foi buscado,
não foi tarde inventada
nem mesmo ouvi no chocolate,
mas disse ela própria
à amiga com quem bebia
quase à hora do almoço,
entre malandros aposentados
e alcoolistas jogando cartas
num boteco de má fama.
Passei à calçada no justo instante
de recolher o que dissera
depois talvez de muito evitá-lo.
E foi num português
quiçá moldado por anos
ao lirismo nulo de dizer do leite,
da carne e da farinha em promoção,
com este português
dando suas voltas
de celofane e teflon,
numa súbita incumbência
de lirismo é que disse:
“… ninguém entende o amor
que eu sinto por minha mãe.
Nem ela sabe o amor
que eu tenho por ela.”
Ouviu-lhe a amiga,
mas também eu
e quiçá os quitutes,
as salsichinhas mini,
os feijõezinhos enlatados
expostos nas prateleiras.
O jogo de cartas
dos malandros velhos
nem se doeu,
mas recolheram as paredes
(assim enfeito)
a ternurinha suada daquela confissão.
Ficou nelas feito o cigarro,
a pinga
e o cheiro dos homens
que se encostam ali.
E assim me fui, satisfeito
em reter finalmente
– feito as paredes,
os chocolates
e os geladinhos –
um rabicho de vida
que não é minha.
Bem cedo aos sábados, uma doidinha
reincidente (como o carro do lixo)
e ligeira (feito ambulância)
passa à rua.
À beira do rio de asfalto
que a suponho cruzar
sozinha em zigue-zague
(apenas suponho,
pois que nunca a vi),
esse timbre antigo de lavadeira
(voz de café fresco
e de folhagem seca)
talha o ar quase palpável
da manhã mal começada.
São seis, são
seis e meia,
e que um certo vagabundo trabalhe
ela ordena berrando
seu refrão insistente
(ao filho morto talvez,
ao filho ausente,
quem sabe ao traste
assassinado do marido).
No entanto,
não acolherá ninguém
a sua ordem,
pelo menos
não agora:
o furor de periquitos
nas folhagens
não lhe sente,
o sono sem sonho
dos prédios
nem se atina
que é sábado,
é cedo,
e que uma voz ferida de lavadeira
rasga a manhã
com o metal da loucura.
Foto de Leopoldo Cavalcante.