Peixada Guará, obrado na lagoa Mundáu em agosto de 94, conseguiu flutuar pelo caribe brasileiro até embocar no rio Capibaribe em março de 2014, enlamando-se por fim no bairro da Várzea, em Recife. É lavrador de palavras, ambulante de poemas e filósofo de mercadinho, escreve sobre as cidades que fedem e das criaturas que habitam suas ruínas.
I. Soneto profético
Algum dia um livro faço
História do Ser e seu estrume
Restos vis e seus perfumes
Amoitados neste nervo baço.
Navegando esgotos, flutuante,
Voando nas asas da dengue
Na garupa, o meu avô banguê;
Sigo para o inferno confiante.
No encalço do rastilho parco
Fissuro a superfície tanta
Naufrago o oceano e o barco
Apenas eu no mundo resto
Em minhas veias correm fanta,
Tenho certeza que não presto.
II . Meu primeiro soneto
O meu amor espraiado
corre leve, ligeiro e deitado
por entre vagas soberanas
e tuas presas de caninanas.
Ah! O meu descanso destemido
se conserva pouco, espremido,
entre as restantes poucas horas
nos ventos terrais e nas auroras
Se um peixe fora eu
morador de locas e corais
não mais teria, em mim, o brêu
Mas peixe não posso sê-lo
e por mais que mergulhe
ainda me conservam os cabelos.
III. Soneto da angústia
Eis de mim a sensação contida:
Me amostrar para o público devido
Ao hábito da escrita indevida
Na pujança do signo incontido.
Peço à audiência que tapem os ouvidos.
A cantilena que produzo é medonha,
Capaz de fazer rachar os bagos,
O mais duro dos pentelhos assanha.
Rubro escorrerá das orelhas visgo
E de quaisquer outros vossos orifícios.
Este é o saboroso fruto do meu ofício
Que maduro cairá como corrosivo afago
Diluindo roupa, pelo, gordura e carnes
Dos meus conhecidos, inimigos e familiares.
IV. Adeus coração amargo
Sigo navegando o Atlântico
Cruzando os caribes em pirataria
Nas águas esquecendo a agonia
Do beijo que te dei naquele dia
Acendo o cigarro e dou um trago
Adeus coração amargo
Sou o próprio capitão Ahab
Mas não precisei de rehab
O tapa olho é Oakley, é chique
Tchau amor, eu matei a Moby Dick
Acendo o cigarro e dou um trago
Adeus coração amargo
Saqueando os portos e cidades
Abracei esta vida oceana
Amo o Nada, ninguém me ama
Como é doce o sabor da carne humana
Acendo o cigarro e dou um trago
Adeus coração amargo
Transporto o nojo à carne branca
E o ódio à colonização
Fiz dos Caetés meus irmãos
A guerra da eterna vingança sofro
Meus canhões ao Penedo movo
E tantos bispos comerei de novo
Acendo o cigarro e dou um trago
Adeus meu coração amargo.
V. Pré história dos ratos
Alvoreceu o dia no estuário
Gorgoleja a maré no arrecife
Desponta, já o vento toca pife
E os mangues caneludos, ostruários
Chutam as águas nos horários
Em que os passarinhos fazem versos
Das locas surgem seres convexos
Dotados de pinças e andar incomum
No céu brigam o Siri e o Guaiamum
Discordando o futuro do universo
Peixe-boi reclama a carestia do leite
Desabafando para extinta plateia
Resolveu por convocar assembleia
Solicitando a presença dos consortes
Da maré. Na intimidade latente
Testemunhou o chié recém-emerso
Obrando a lama, dizendo aos deuses: “peço
Dos minutos dar-me só mais um”
No céu brigam o Siri e o Guaiamum
Discordando o futuro do universo
Mesmo o peixe que corre no mar
Nas avenidas alimenta e é alimentado
Fora d’água é que morre afogado
Sendo devorado até nada restar
A borbulha embala o manjar
Da carcaça pela casca, confesso
Alguns escapam com sucesso
Maçunim se enterra fugindo do baiacu
No céu brigam o Siri e o Guaiamum
Discordando o futuro do universo
Na planície em que se oculta o marisco
Se alimentou o peixe-boi na superfície
Ombreou-se às arraias de tolice
Lagarteando entre os xaréus corisco
Trovejadas peneiram as águas de chuvisco
Assustando os cardumes submersos
Que fremem sob a tempestade no encalço
E o horror se dissolve nos animais em jejum
No céu brigam o Siri e o Guaiamum
Discordando o futuro do universo.
Arte: Untitled (Red Fish in Ti Leaf), de Lilla Marshall.