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Extrai dos meus olhos

por Vivian Pizzinga
Fotografia: Trem no km 55,900 da ferrovia – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).

Vivian Pizzinga é carioca e lançou Ruído nos Dentes (Urutau, 2022, poemas), A primavera entra pelos pés e Dias roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2015, 2013). Tem doutorado em Saúde Coletiva (Uerj), publicou na Revista Lavoura, na Revista Incomunidade e outras. Foi finalista do V Concurso Relato Breve Cuéntame um cuento, 2021, da Universidade de Salamanca com o Museu da Vida da Fiocruz.


extrai dos meus olhos

extrai dos meus olhos a vontade de ver, o despautério de insistir nas cenas, de buscar as legendas, de querê-los abertos, de querê-las visíveis. extrai do meu corpo as ausências, inúmeras. aproveita pra me trazer um café quente. senta ao meu lado enquanto queimo a língua ao sorvê-lo devagar, enquanto derramo um pouco no sofá, é praxe minha derrubar as coisas. acende meu cigarro como quem sabe esperar, me ensina a sabê-lo. divide comigo tua circunstância, faz dela um objeto compartilhável, de manuseio em dupla. arranca das mãos (minhas?) o impulso do gesto, me ofereça um pacote qualquer pra segurar, me ofereça vários. faça qualquer coisa que me aquiete. invente uma palavra que nos explique, mas que seja universal. lê comigo um diálogo do platão, traz o segundo café, me ofereça o segundo cigarro. escreve comigo um enredo possível, me explique spinosa, recite sua ética, mesmo que eu durma no meio. dorme também.


sal em vão

escorre a angústia radioativa
pelo canto esquerdo da boca
mancha a fronha, o lençol, o quarto
entope os olhos de um sal em vão
adormece de novo sem ter razão.


traçar poemas

ela sabe traçar poemas.
ela sabe traçar uma prosa de cunho andrajoso
e nessa prosa fantasmagórica
sabe enumerar as horas vagas da vida
descrever as horas fartas da noite
desentender as horas mortas do dia
desencavar as horas gotas, com foice.


entulhos naquele mar
(para Atafona em outubro)

e de repente, o fim.
a faixa a partir da qual não se pode passar
o momento do livramento
o instante em que a estrada desiste.
a estrada cansada
o chão encolhido
o caminho em suspenso.

estaciono
e adivinho entulhos naquele mar
restos de jarros
pedais de bicicletas
talheres usados pouquíssimas vezes
nenhuma vez.

tábuas, potes, tampas, pregos.
pistas. sustos.
lascas. cascos.

tudo o que o mar encobriu
materialidade de rotinas pregressas
igualzinha aos dias de ontem
aos anos que se mesclam uns aos outros
[foi quando aquela festa aquela briga aquele papo?]

o para-brisas é a única coisa que se move
na borda definitiva da rua
ela acaba enquanto a chuva recobre
o basalto inerte do solo.
pinceladas insistentes de frio e umidade
desarranjam a vontade de sair do carro

mutila-se a viabilidade de caminho
a curiosidade, o ar, os pulmões.
mais uma vez, alguma coisa acaba.
porque tudo sempre tem que acabar.


canastra de copas

contar as próprias mazelas, assumir as covardias entre um refresco de maracujá e outro, destrinchar os infortúnios mais rasteiros e sentir a tensão lacerando aquela parte anatômica entre o estômago e o intestino (que esses nomes nem sei). depois, logo depois, sentir a náusea entubada e formada por goles nada cautelosos de cerveja, golpes nada amistosos de medo. revelar os infortúnios e os desvios, as covardes omissões, não saber por qual frase começar, como impactar menos à medida que se conta o incontável, que se ronda o insondável. esse inventário de vicissitudes renhidas, moídas por sua própria devassidão, esse inventário, meu amor, não deixa de ser um recomeço. a vida é feita de circunstâncias interligadas, uma canastra de copas que vai se formando na mão. e se chego até aqui com esse tanto pra te contar é porque há onze anos se pá e eu nem teria tanto pra te contar. agora escrevo sem óculos, uma míope diante de seus tropeços de seus refluxos de seus rejeitos. contar o passado, escarafunchar detalhes, assumir-se como quem diz: ei, sou eu. lesionada, sim. culpada, bastante. envergonhada, deveras. eu a deito sobre o tecido verde da mesa, essa canastra incompleta. canhestra. enviesada, sempre. acabrunhada, não mais.


Fotografia: Trem no km 55,900 da ferrovia – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).

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