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Sucessão

por Daniel Borges
Desenho de Ariyoshi Kondo ilustra os poemas de Daniel Borges.

Nascido no Rio de Janeiro e apaixonado por literatura desde pequeno, Daniel Borges é graduando em Letras pela UFRJ e escreve poemas, contos e prosa, com versos marcados pelo fluxo de consciência e pela incessante busca pela forma inconstante e oculta do existir.


Sucessão

vestidos de ouro
de latão
andando sobre ladrilhos
de pedra afiada
dançando
em meio ao silêncio

escutando as cornetas
da entrada real
reverenciando
o abstrato
seguindo
o discurso mudo
montando em cavalos
de madeira
e conquistando territórios
que sequer existem

somos como nobres:
construímos nosso castelo
de papelão riscado
no meio da rua
colocamos na cabeça
palavras tortas
ideias utópicas
e a coroa de fio de cobre
roubado

bebemos ao nada
nas noites escuras
cantamos felizes
uma linha antimelódica
e arrastamos
elegantes
nossas capas
de pano velho

somos realeza:
vivemos todos
na linha de sucessão
à morte.


AA

quando comecei
com o vinho
meu pai me perguntava
baixinho
o porquê de eu beber tanto

nunca consegui responder

hoje, porém
enquanto ele grita
e diz atrocidades
e desrespeita tudo o que sou
e um dia já fui

percebo, pai,
que bebo
pra te escutar
baixinho
de novo.


Ecos

E não há sede de águas
Nem a vontade dolorida da palavra.
Estou no centro escuro de todas as coisas
Mas a visão é larga
Como um grito que se abrisse e abrangesse o mar.

Hilda Hilst

geralmente
nos bares
nas conversas
as pessoas costumam falar muito
no que se tem
no que é palpável
no que se pode contar

e sempre que entro
nesse tipo de assunto
penso menos no que se tem
em vias gerais
e mais no que se sobra

tenho feito as contas
olhado nos índices
apagado o papel
e escrito tudo de novo
tenho me visto fracassar
de tantas formas possíveis
tenho pescado na pinça
indícios
do que um dia fui

tenho inventado o que não sei
e mentido sobre o que sei
na esperança de acertar
tenho tido muita insônia
com medo de encontrar
as coisas que deixei pelo caminho

tenho tido pressa
ando correndo
à procura de mim
e nunca me encontro

queria me perguntar
o que sobra



o que sobra quando
a alegria vira pesar
o trabalho vira protesto
e nas ruas
numa quarta de cinzas
as bombinhas carnavalescas
se confundem
com balas de borracha

o que sobra quando
até esse protesto é inútil
e aqueles que pensam correr
sequer se movem de lugar
e estamos cheios
de sonhadores
que se esqueceram
de fechar
primeiro
os olhos
e eu
que gostaria tanto
de gritar
mas vivo
perdendo a voz

queria correr pelas ruas
de madrugada
pra onde, então?
parando o trânsito
furando os pneus
quem pode me dizer
aonde guardei
o que sobrou?
entrar no mar aos gritos
chutar as areias da praia
fazer silêncio repentino
tentando escutar minha
própria voz

traçar linhas
chamem os cães!
mapas
espalhar cartazes
tragam a bússola!
escrever versos
falar em alto-falantes
correr em multidões de
caras pintadas de pó
e de peitos manchados
de sangue

depressa, não temos tempo!
preciso saber
onde me guardei

e assim que encontrar
me perguntar
o que sobrou então
daquilo que
tanto sonhávamos
daquilo que
pensávamos para nós
daquilo que
não contávamos
com a boca
mas entregávamos
com os olhos

queria muito lembrar
em qual cadeira
em que cruzamento
debaixo de que mesa de bar
me deixei
pensando no que sobra
e voltar correndo
não para me buscar
mas para ter a certeza de que

em matérias do que se tem
e do que se sobra
ecoo como um grito
abrangendo
a imensidão do mar:
tenho ligeiro costume
de sobrar demais.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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