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Três poemas de vida, morte e vida

por Renata Mattos Avril
Fotografia: Vale do rio Ipiranga (o Véu da Noiva) – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).

Renata Mattos Avril ama as palavras (a escutar, ler, escrever, pesquisar, traduzir, inventar, dividir, utopiar, improvisar…) e quando elas fazem silêncio para dar lugar à música.


I

Vazio, não o oco
Oco sem vida, esvaziado
Oco que fica quando o sangue se esvai 
Nem mais uma gota, nada, um nada oco

Vazio cheio de possíveis
gestando palavras, imagens
gestando criações, vida, pulsar no mundo
Um outro ser, um outro estado de ser, outro

Vazio preenchido à revelia
Explosão de nãos, de impossíveis
Vazio sentido como oco, como eco disforme
Vazio… É preciso deixar sangrar, sangrar, amar

Um nada ressurgido ao dia
Sim. Novo nada, novo vão, novo vazio
a espreitar o ponto em que oco pode virar oca
a espreitar a nova curva do corpo insistindo ser

Sim, sou mulher
Carrego esse vazio no útero 
Não, não posso ser mãe, não agora
Me liquidifico em lágrimas e deito sangue

Sim, sou alguém
Carrego esse vazio do humano
Posso o que minhas escolhas cantam
Me reinvento gritando chuva, rio e tempo

O que podemos ser cria raízes no vazio até voar

II

Ao me levantar, a voz de meu filho a me dizer
“tem um pássaro morto aqui dentro de casa”
E já sabia onde era, o cheiro de morte há dias
no quarto em que eu não mais dormia nem ia
Impossível dormir sob o teto quente de verão
Cheiro que eu não conseguia achar a origem
que me fazia sair de lá depois de procurar

No chão do quarto, quase em baixo da janela
um filhote de passarinho deitado sem vida
o corpo ainda mole, fresco, o sangue ainda
quente marcando o azulejo branco e frio
Não era dele aquele cheiro persistente
Atrás do corpo inerte, o criado mudo
grudado no canto, canto cego dali

Atrás do criado mudo, o corpo inerte
o bico aberto… asas e olhos abertos
o piado inaudito, calado, congelado
manchas na parede, traços de luta
de vida, esforço, vontade de viver
Filhote de pardal caído do ninho 
nunca mais vai voltar a cantar

E a catapulta da memória me lança
sem escala na manhã azul gelada 
dirigindo sem fôlego ao trabalho
poucos meses depois da perda
de minha filha de olhos de lume
Um pássaro colide no para-brisa
explodindo direto na minha dor

O nó inusitado das lembranças
armadilha de imagens soltas
que se encontram no acaso
de imprevistos tão incertos
A força dos inocentes que
lutaram pela vida e não
resistiram me toca…

Nós
ficamos
Cada
novo
dia
exige
coragem

III

Nenhuma voz atravessa o mundo
sem deixar marcas rastreáveis
de um desejo mais antigo que
ela mesma, bem mais antigo
que o ventre do tempo do
qual nós fomos paridos
E reencontrar, em si, o
desejo não enunciado
para, depois, não o
seguir, transformar
o não dito em um
algo novo, em
algo eu… eis
aí o desafio
de cada
voz…

*


Fotografia: Vale do rio Ipiranga (o Véu da Noiva) – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).

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