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4 prosas curtas de Monalisa Rigo

por Monalisa Rigo
Arte: Ida in an Interior with Piano, de Vilhelm Hammershoi.

Monalisa Rigo nasceu em 1985 no Brasil, mas anos atrás essa ex-redatora publicitária decidiu provar viver nas terras dos seus antepassados espanhóis. Aterrissou em Madri e mal sabia ela que nos seis anos seguintes exploraria todos os (en)cantos da cidade. Hoje, a paulista de berço morre de saudades de Madri e sabe que voltar é só questão de tempo. Enquanto isso na sala de estar, guarda seus livros em ordem cromática e coleciona bibelôs e entradas de cinema num armário da sala que já não fecha mais. Já na nuvem, com aviso de espaço limitado, coleciona listas gerais e playlists.


Íris, córnea e pupila

Hoje me botaram colírio para dilatar a vista. Eu aproveitei o momento e fiquei chorando de felicidade por você ter cruzado meu caminho. Na frente de todo mundo. Impressionante! Ninguém desconfiou que eu tinha um coração gigante no meu peito a ponto de explodir.

Logo depois, o oftalmologista disse que minha retina estava bem, apesar da miopia de sempre. E então, eu agora acredito ainda mais no que vejo, no que tenho, no que beijo. Acredito na gente, meu bem!

E assim que eu cheguei em casa, você me recomendou um podcast para eu escutar. E entre a vista biruta e a aversão à luz, me tranquei no quarto e topei a ideia. Logo eu, tão millenial para podcasts. Era simplesmente a história de um casal que abriu os braços e fez um país. Como na letra da Marina Lima e do Antônio Cícero (s2, s2, s2). Resumindo a um tweet, eles criaram uma constituição para a relação deles. Com emendas, medidas provisória e assembleias. Pode parecer chato contando assim, mas eles simplesmente queriam que seu objetivo único – manter seu amor vivo – tivesse regras, limites e tomadas de decisões para durar para sempre.

Antes de dormir, li um trechinho de um livro que dizia a mesma coisa, só que de um jeito diferente:

“– Qual é o segredo da felicidade de um casal?
– O amor recíproco e um objetivo em comum”

Pois bem.

O caso é que sem querer, lembrei que hoje, por onde passei, se celebra o dia de San Valentín. E foram anos não-celebrando esse santo e essa data com pena e pesar. Hoje sou peso-pena. Hoje ando leve junto com o seu caminhar.


Ônibus cheio

Hoje fiz uma viagem de quatro horas. Separei um lanche e uma revista e fiquei impaciente quando vi a fila enorme de passageiros que havia na rodoviária. Sentei na janelinha, mesmo meu lugar sendo no corredor. No segundo ponto, um senhor com uma bolsa jeans escrita “Rolling Stone” e um conjunto ocular impressionante contendo dois olhos verdes-água e sobrancelhas frondosas brancas perguntou se aquele era o meu lugar. Disse que não, pedi desculpas e pulei para o assento do corredor, colocando o fone de ouvido na sequência. Passou um tempo, ele disse: “pode ficar na janela!”. Disse que não era necessário e voltei a pôr o fone, mas agora, timidamente reparando nele. Ele vestia uma camiseta bem old style de uma rádio antiga e um sapatênis maravilhoso. Lia Philip Roth – O Complexo de Portnoy. Não lembrava da história, só do humor de Roth. E pensei que aquele senhor podia ser bem-humorado também.

Olhei o mar e os barquinhos de pescadores que enchiam o horizonte e ele me cutucou de novo, me oferecendo balas. Era o início da nossa amizade.

O Zé é a melhor pessoa que até agora este ano me rendeu. Ele não era só uma capa de livro interessante. Ele era conteúdo de vida puro que emanava luz. Me contou como foi trabalhar com o Tom e com a Elis. Como foi ganhar a vida no rádio. Eu contei pra ele que também trabalhei numa rádio e conheci a Bebel Gilberto. Ele disse que pegou a Bebel no colo e aí, nesse ponto, já só ouvia e perguntava. Não tinha o que contar a ele. Falar que gosto de escrever para alguém que está lendo Roth? Falar que gosto de Sam Cooke para alguém que trabalhou com Tom Jobim? Ia perguntando e perguntando infinitamente. “Mas o senhor acha que hoje em dia os aplicativos são de uma importância perene?! E o que vai existir depois?” Ele respondeu pegando firme na minha mão: “já disse que meu nome é Zé, não me chame de senhor que te chamo de Monalisa, aliás, você tem que escutar a versão do Nat King Cole na voz de Cauby. Ah, você tem internet aí? É, estamos na serra, né? Anota aí para ver mais tarde: joga no YouTube “Tú, mi delirio”, no piano do Nat King Cole. Mas fica olhando o vídeo, tá? É o bolero mais lindo já composto”.

Era referência atrás de referência. Sorriso atrás de sorriso. História atrás de história.

No metrô, nos abraçamos, ele me disse para ligar para ele qualquer dia. Que não era sempre que ele estava trabalhando já que o filho estava no hospital, mas que a gente dava um jeito de tomar um café.

Meu novo amigo começou vendendo discos de 78 rotações e hoje entende o progresso da música armazenada na nuvem (apontando para uma nuvem cinzenta na estrada). Ele tem mais de 4 mil discos. Tem que arrumar tempo para ir para o Rio jogar bola com um cantor famoso da mpb. Tem paixão pela Praia do Bonete, como eu. E como eu, ele odeia dirigir, por isso anda de ônibus. Tem dois cachorros. Tem filhos, netos e bisnetos. Tem um programa na rádio. E teve muitos outros. Tem papo agradável para quatro horas de viagem. E tem outra coisa parecida comigo: tem uma técnica anti-social de fingir que está lendo, como diz ele “vai que a pessoa quer conversar comigo a viagem toda e eu não quero”. Um pouco antes do nosso abraço de tchau, ele me contou que é fã incondicional de Roth. Que já havia lido e relido Complexo de Portnoy, mas sempre usava ele de escudo figurativo para pessoas chatas, mas que dessa vez, ele estava feliz pela sorte de ter encontrado alguém bacana do lado dele no ônibus.

Mal sabe ele que a sorte foi toda minha.


It’s lonely out in space

Pela minha altura, a visão ficava dividida entre os detalhes da porta e janela do carro e o mundo que existia lá fora. Eram assim todas as manhãs quando meu pai me levava à escola. E então, tocava essa música na rádio e ele aumentava o som. Não cantava junto. Diferentemente das outras. Até hoje não sei se pela falta de domínio no inglês. Ou se de fato pela viagem interna que ele se propunha.

Íamos os dois sem falar nada. Eu respeitava aqueles senhores. Sentia a velocidade que o carro alcançava, as trocas de marcha, o nosso ritmo, a voz, o piano que tocava diferente das aulas de ballet [tiny dancer é para outro capítulo]. Dançávamos tímidos no bailinho do nosso imaginário pelo cinza da cidade que mesclava perfeitamente com o da porta do carro. Minha miopia prematura me fazia focar mais no pino que travava a porta que na liberdade da janela. Os olhos pequenos e juntinhos focavam no pi(a)no. De repente, eram dois pi(a)nos. Três pi(a)nos. Emendando um no outro, formando meu instrumento imaginário.

Os anos passaram. Mas me lembro bem de um dia que demorou a passar. A janela embaçada. Eu enjoada, suja. Buscando nas lacunas da minha memória. Cantarolando sozinha entre lágrimas e vazio dessa vez a tal canção. Entendi a solidão adulta de que se tratava a letra. Era calar e permitir que Sir Elton Hercules John descrevesse o inexplicável. Vestindo paetês, botas e óculos excêntricos. Regado à whisky e cocaína. Para ter forças e adentrar no carro dos outros. No pino que trava a porta. No lençol cheirando a álcool. No quarto alugado minúsculo. No bigode anos 80 do meu pai. No olhar triste. Por onde todas as dores se escondem. Dos nossos silêncios que duram eternidades.


Otto

O vidente que leu minha mão predisse que haveria uma junção de passado, presente e futuro numa metafotto. Com dois Os e dois Ts mesmo. Como o pilotto de monomotores, dos Amantes do Círculo Polar, o filme que deu origem à minha missão de devorar o mundo. Na palma da minha mão, não estava escrito seu nome. Mas um sonho dentro de mim, me dizia que conheceria um menino com o nome palíndromo do amante de Najwa Nimri no longa. Só que nunca pensei que ele seria tão doce e pequetitico.


Arte: Ida in an Interior with Piano, de Vilhelm Hammershoi.

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