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As bocas, por Alexandre Gil de França

por Alexandre Gil de França
Arte: Night Scene, de Carl Rudolph Krafft.

Alexandre Gil França nasceu em Curitiba em 1982. Em Curitiba, realizou uma porção de coisas relacionadas à arte: peças teatrais, CD’s, livro de poemas. Aos trinta e poucos anos, decidiu morar em SP para saber mais sobre as tais “coisas relacionadas à arte”. É mestre em Artes Cênicas pela USP e doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp. Edita, junto à poeta Iamni Reche Bezerra, a Mathilda Revista Literária.


Antes o lábio. O lábio e as linhas que o compõem. A cola. Aquele desgrude lento que é um tipo de respiração secreta. Aquele desgrude lento que é o anúncio de um jorro íntimo. E depois a saliva untando de alimento as linhas, untando de umidade a cor; a lisura e o contorno de um sabor inominável. Depois o movimento, como pernas deslizando o ártico, passo a passo, caminhando-deslizando esculpindo o gelo com algodões. Depois, com, digamos, duas outras pernas, a pressão da queda, a pressão do braço que um outro lábio ao abraçar, envolvendo o lábio abaixo, o lábio inseguro, o lábiespasmo, evoca. A Halls preta se evola encolhida cortando a pontinha colorida da coral-mucosa. Deixamos nossos corpos afundarem. Subimos-pegar-um-ar.

Agora a descida ao verão, ao abraço solar, a profundeza vicária. Agora o calor sanguíneo, mucosa com mucosa, artéria, veia, plasma, dois organismos que se sugam, que se espalham, que se enxarcam. Gavetas entulhando carne: cartas suportando letras: doses suportando quedas; espectros úmidos, súbitos; sítios rodeados de eletricidade. Emerge a língua. Antes, o anúncio-lesma, a sombra-lesma, o fantasma-úmido: eis que surge, senhora, rainha de espadas, florete lânguido, doce e malemolente – florete espalhando flores recortando pétalas espirrando síncopes. Ejaculando-se. Eis que entra e sai, molhando molhando, jorrando tato, pressas, orando inquieta a represa do nojo, abrindo espaço para que o órgão embaixo se lembre de acordar: a vida. A língua ensaia a vida e o nascer e o morrer na outra língua. Tudo tem um sabor, eis a prova. Reconheço a carne e um gosto de fototaxia prateada. Funciona, ela aparece, a vida, e rimos, gargalhamos, como dois autômatos do riso, duas chagas explodidas em artifícios luminosos. As Moiras desenham luas ao invés de rios. Nosso estômago se expande, o intestino mergulha em alguma lama assombrosa (cítrica e sedosa ao mesmo tempo). Ejaculo mil vezes de maneira invisível aqui. Desembrulho a dor em um espaçoso espreguiçar de prazeres, e a beijo novamente para saber se é isso o que o meu pensamento absorve.

O hálito. O hálito de uma palavra ou outra, o hálito entre uma palavra ou outra, entre fonemas. Agora o seu hálito é o sabor artificial de morango. Uma espécie de redução, destilando gota por gota o açúcar branco derretido na saliva, antes que ficasse azeda a mistura, antes que ficasse sonora a faísca, que ficasse sem pressa a compressa, que ficasse perdido o arrepio. A mistura continua persiste e projeta um futuro de continuidade úmida, cintilante. Ela escorre, ela, a dona da outra boca, escorre lenta no esôfago, remexendo os líquidos do estômago, vasculhando as dobras do intestino, imprimindo uma parede de ar e transparências sibilinas entre os órgãos. Um vento interno guarda a lava dos impedimentos. O ejacular nos suspira juntos antes de acordar. As mucosas querem se acostumar a isso, pedem para que eu me acostume a isso, e dobram suas cobertas para que entre uma dobra ou outra sobreviva a superfície úmida dos seus olhos fechados. São seus olhos fechados que eu desejo tatuar nas pálpebras. São seus olhos fechados que eu pretendo ter na impressora da retina, no amanhecer dos ácidos, no crepúsculo dos sonhos atravessados pelas espadas da consciência. Esses olhos que eu faço engolir enquanto roço devagar a língua na sua captando a cor da alimentação, o timbre da sede, o volume dos desejos, os garranchos do sistema nervoso. Essas pálpebras que eu sinto no fundo da retina enquanto sugo a tinta do insaciável, o substrato das luminosidades campestres, o suco invisível do seu deságue vaginal. Eu quero escorrer junto, sinto inveja dos fluídos a movimentar seus músculos e artérias. Até porque, em mim, uma dor de entupimento. Um extravasar que se nega a acontecer.

Quero beber exatamente isso a que você chama de gozo, e eu chamo de noite. Quero beber sua imagem como quem bebe o avesso da morte, o avesso do infarto, o avesso do estouro. Quero murmurar junto a invisibilidade do seu labirinto carnívoro, das curvas do cérebro, do sistema elétrico da memória fusionada, e entender a espuma do espasmódico eclipse, a brevidade esponjosa dessa noite úmida que é a sua boca. Quero continuar a sua boca, cuspir e engolir a saliva, a soma de afetos, a gula por esconderijos. Descansar exaurindo-nos. E lamber as paredes com o corpo, o limo e o sumo dos acontecimentos.

Vejo a sua nudez sorrindo por debaixo das células.

Um planeta dissolvendo o cosmos em nossa queda perfumada.

Você me olha. Seus olhos projetam um sinal lá longe, onde enxergo seus olhos como duas bocas que se abrem. Seus olhos fixos aqui a um palmo de distância. Seus olhos impressos na pálpebra fechada. Meus olhos permanecem abertos para que seus olhos continuem fechados, continuem alimentando de pálpebra a minha língua e o meu hálito. Eis um chamado de carne: o salivar do céu; a correnteza da sede. Você se afasta como um bicho tragando a noite entre as presas. Encosto os lábios em seu queixo. Encosto a mão em sua barriga. Você retorna com a iluminação do bairro. Um caminhão de fendas, de máquinas que sangram fulgurantes. Um céu de pordentros que se abre na calçada. Há nuvens de pensamentos vazios. A mão se aproxima devagar de um seio. Você a empurra contra a rigidez altiva. Quer que eu acelere. E eu entendo. Compreendo o gesto e agora o volume que tenho ao alcance das mãos ganha uma nova configuração sensível em meu corpo. Aprendi instantaneamente. Você me faz aprender coisas instantaneamente. Chupo a pele do pescoço como se mamasse um leite feito de suor. Sinto pulsar ali. O perfume é contaminado de saliva. Sinto ter lhe enxarcado de humanidade. Não, não pode ser. A verdade escorreu para outra dimensão; a dimensão dos líquidos expatriados. A humanidade é uma baba que se limpa com o rosto. Recolho um fantasma de lentidão ereta. Chupo com mais força, agora o sangue pulsa o ritmo de uma música sem notas em meu peito. Tensa a sua pele expulsa outros odores. Perfumes roxos e amadeirados que me inflamam. Estou inflamado de um prazer espesso e sinto possuir nos nervos uma espécie de eletricidade em toras. Ouço o gemido espontâneo, o mel pinçando um átimo na ponta da língua. A chuva cai desenhando o beijo no amplo espaço de um verbo

Chega, você diz.

E me devolve ao lugar ordinário onde os olhos estão demasiadamente abertos.

Nunca mais a tela das pálpebras?

Nunca mais a lentidão de imagens desfiguradas dançando a garoa dos corpos?

Quero voltar.

Mas o que tenho é somente a estrutura enferrujada. E é na ferrugem dos dias que me lembro do mel-gemido e das pálpebras e das línguas e dos seios; das inflamações inúmeras. Seria a vida um esforço para retornar a essa sangria sem cais? Quando sentirei novamente o aprendizado das horas costurando fantasmas em minha boca? Agora somente o teatro, o ensaio exaustivo, o passo enxuto, a repetição do horário, o metrônomo dos dias, a figuração infeliz, o desenlace de um filme.

Agora a separação de limites, as coisas e seus lugares, a visita programada, a eucaristia dos costumes…

Como refazer uma boca?

Sinfonia oca e molhada, caos orquestrado em sucções, chuva inundando cidades, vasculhando tocas, rebordando os ares,

chuva implodindo mangues, deslizando terras, sêmola, sumulas, pântanos em comunhão,

o sistema nervoso, a espinha dos mares, a costela dos ventos, convulsões co-guiadas, trovões e risadas, gemidos e papilas,

o que alimenta as dores, o que alimenta as somas, as mortes, sol desfolhado, um incêndio invisível, as frutas, sabores, o sal e gotículas,

pigmentos, florescências…

…de um céu que não se conta, desfazendo-se em ondas, formando-se em germes…

…germes de gemidos moucos, terra de comer em prantos, de ereção secreta,

terra descarnada, sonda, cárcere gozoso, um íntimo que mostramos juntos, pincelando escuros, suspirando sombras:

nossa anônima intimidade.

Amar é um verbo conjugado em quem?

Noites destilando noites.

Aquele monte de papel picado.

A câmera lenta da morte que escapa de se tornar cicatriz.


Arte: Night Scene, de Carl Rudolph Krafft.

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