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Forte como a morte

por Otto Leopoldo Winck
Arte da capa de Forte como a Morte, romance de Otto Leopoldo Winck.

Doutor e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, capital. Depois de uma passagem por Porto Alegre, radicou-se em Curitiba. Em 2005 foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond. Em 2017 lançou pela Editora Appris o ensaio Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza, resultado de sua pesquisa de doutorado, e no ano seguinte publicou um volume de versos, Cosmogonias, pela Kotter Editorial. Seu último romance, Que fim levaram todas as flores, saiu em 2019, numa parceria da Kotter com a Patuá. Leciona atualmente na PUCPR e no programa de pós-graduação stricto sensu da Uniandrade.


Quem também apareceu aquela noite foi dona Zenóbia, já mencionada, especialista em aparições, milagres, terços e jaculatórias. Mulher de um fazendeiro decadente da região, vivia apregoando que Nossa Senhora, em suas inúmeras aparições pelo mundo (segundo sua mais recente contabilidade, já passavam de 250), pedia muita oração pela Igreja, pois a fumaça do inferno havia penetrado em seu interior. Tudo começara com o Catecismo holandês e as interpretações deturpadas que se faziam do Concílio, que em si não era mau. Mais recentemente, contudo, o joio passara a ser o marxismo, que se infiltrava em setores cada vez mais amplos da Igreja, sobretudo na América Latina. De fato, os padres agora só queriam saber de política, agitação e reforma agrária. Mas tudo isso era necessário que acontecesse, explicava ela, até vir o tempo da grande tribulação – que já estava próximo! –, quando presenciaríamos a vinda do Anticristo e passaríamos inclusive pelos três dias de trevas, aqueles em que somente as velas bentas acenderiam. Para escapar a tudo isso, sem cair em apostasia, era preciso estar sempre com o papa – o novo papa polonês –, o encarregado de conduzir, com mão firme e segura, a barca de Pedro, cuja única e verdadeira missão, nunca era demais frisar, consistia em salvar almas. Afinal, a haste vertical da cruz não era maior que a horizontal?

Magra, seca, de idade ignorada mas pelo visto já rondando os setenta, dona Zenóbia, não obstante o seu propagado ascetismo, não abria mão de um borrifo de Ma Griffe, um rouge, uma sombra – o que tornava os seus olhos negros, nas órbitas salientes, ainda mais realçados. Além disso, não deixava de ostentar no colo branco e encarquilhado um torçado em pérolas, apesar da ausência quase completa de adornos nas camponesas entre as quais exercia o seu infatigável apostolado. Aparentemente não tinha ascendência polonesa; todavia, em suas veias corria um sangue de origem não muito distante: o Cáucaso da vizinha, fascinante, majestosa, enigmática e, desde 1917, aterradora Rússia. Naquela noite, antes da reza do terço, ela tivera por cerca de meia hora um colóquio privado com Rosália. Ao sair, declarara para a pequena assembleia que se ajuntara à porta do quarto:

– Tivemos uma ótima conversa. Apesar da pouca idade, Rosália é uma moça muito inteligente, de boa formação e sólidos princípios. No mais, ela tem plena consciência do que está passando e aceita essa cruz com humildade e grandeza de espírito. Analisei também os estigmas. Não sou médica, não tenho formação científica, mas sei perfeitamente distinguir a obra divina da humana. Pelo que eu vi, o que se passa com Rosália é verdadeiramente… – fez uma pausa, olhando em volta, como que para aumentar a expectativa. – É verdadeiramente obra de Deus.

Seguiu-se um murmurinho geral de aprovação, no qual se destacavam, em meio a suspiros de alívio, exclamações como “Deus seja louvado” e “obrigado, Senhor”. Todos se sentiam honrados – boias-frias, arigós, meeiros, arrendatários, carroceiros, pequenos sitiantes, funcionários do comércio em Imbiruçu – porque Deus se dignara olhar para eles. 

– Podemos afirmar com toda a convicção, e sem medo algum de estarmos nos precipitando, que Rosália é uma alma vítima – dizia dona Zenóbia agora, empertigada numa cadeira de espaldar alto, um rosário de contas de cristal nas mãos de unhas manicuradas. – Almas vítimas, como vocês sabem, são pessoas que por uma graça especial se unem aos sofrimentos de Cristo pela salvação da humanidade. É claro que a palavra definitiva cabe à Igreja. Mas é bom termos em mente que, por questão de prudência, a Igreja costuma levar muito tempo para emitir um veredito. E enquanto isso não se dá, temos todo o direito de manifestar nossa opinião e agirmos segundo nossa consciência.

– Dona Zenóbia tem mais fé que o padre – seu Boleslau não pôde se furtar a comentar no ouvido da esposa.

Dona Florentina, porém, nada respondeu. Não sabia o que seria pior: uma filha beatificada em vida ou uma filha acamada, esvaindo-se em sangue. Para dona Zenóbia era fácil. Afinal, não era ela que tinha que acordar de madrugada, trocar bandagens, atender visitas o dia inteiro.

Deu-se então início ao terço da misericórdia, oração esta – ainda segundo dona Zenóbia – transmitida diretamente por Jesus à Irmã Faustina, uma religiosa polonesa falecida em fama de santidade pouco antes da Segunda Guerra Mundial.

 – Eterno Pai – puxava ela –, eu vos ofereço o corpo, sangue, alma e divindade do vosso diletíssimo filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, em expiação dos nossos pecados e dos do mundo inteiro.

Ao que o povo respondia:

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

Dona Florentina levantou os olhos cinzentos e os fixou, à frente, no grande quadro pendente da parede cor-de-rosa. Debaixo dele se viam – numa pequena mesa de pinho sobre a qual se estendia uma toalha branca com motivos geométricos – uma barafunda de velas, um crucifixo de ferro fundido, uma Aparecida de gesso, santinhos os mais variegados e as fotografias dos entes queridos pelos quais se rogavam graças. 

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

O quadro era de Nosso Senhor Jesus Cristo, vestido de branco, uma mão erguida num gesto de bênção, a outra tocando a túnica no peito, de onde refulgiam dois grandes raios, um vermelho, outro alvo. Embaixo da figura, uma legenda com os dizeres: Jesus, eu confio em vós. 

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

Dona Florentina sentiu o coração apertado, como se fosse o dela, e não o da filha ou o de Cristo, que estivesse transpassado. Moído, ele sangrava, não um sangue límpido e rubro, mas um mosto espesso, oleoso, amargo. E não era de agora, não, que aquele sangue vinha de muito tempo e de muito longe, outras terras, outras épocas – e parecia-lhe, confusamente, que Eva tinha nisso a sua parcela de culpa.

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro – repetia, junto com o coro, buscando forças dentro de si.

Com efeito, o seu fardo não fora leve: filha de imigrantes (a primeira palavra em “brasileiro” fora aos sete anos, quando Getúlio Vargas proibira o funcionamento de escolas em língua estrangeira no Brasil), o pai alcoólatra, um filho morto, o outro extraviado, e agora a filha, a única filha, com “aquilo”. Fora isso, o frio: o frio do tempo, o frio da vida, o frio de seu marido que, coitado, já tinha não poucas amolações. Alma vítima? A expressão não lhe soava bem. Ali todos eram de certa forma vítimas: ela, o marido, aqueles colonos todos, cada um com sua história de lutas, agruras, feridas. E eles tinham não somente alma, mas também corpo: um corpo igualmente vítima, lanhado das marcas da vida. Rosália era apenas a expressão disso tudo – teria dito, não ela, evidentemente, incapaz de tais raciocínios, mas um observador externo, com mais traquejo, mais perícia, mais argúcia, à guisa de narrador.

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

De soslaio, seu Boleslau olhou dona Florentina: cabeça baixa agora, olhos comprimidos, o indefectível pano florido a cobrir-lhe os cabelos. Sem dúvida, a mulher sofria. Pudera, com a filha sangrando ali ao lado – no quarto, separada dos outros por questão de prudência –, como ser feliz? Ele era homem, ou seja, mais seco, severo, contido; ela não, era mulher, de mãos grossas e varizes roxas, é verdade, mas mulher, e mulher, ainda que pobre, ainda que colona, ainda que polaca, tem sonhos, planos, desejos, quer ser feliz.

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

Talvez ele nunca a tenha compreendido por completo e, como a geada negra, estorricara os seus brotos mais tenros e promissores. Mas fazer o quê? Ele era assim. Devido ao sangue, às invernias, às aporrinhações, duro como nó de cabriúva. Juntos, lá se iam cerca de três décadas, desde quando subiram ao velho altar de uma capelinha de madeira em Rio do Banho. Teria sido então possível adivinhar o futuro? Não, até que não: as missas aos domingos, as colendas, as festas na Igreja, o trabalho na terra, a luta contra o sol, contra o mato, contra o curuquerê, o olho grande dos latifundiários, as contas, os papagaios, as hipotecas no banco… O filho afogado? Não, não era raro as famílias com um filho falecido. A prole reduzida? Também não. Desde o início ele soube que a mulher, com os seus constantes achaques, não seria boa parideira. Passara o tempo, a saúde se lhe firmara, mas depois de Rosália não vieram mais rebentos. Agora, a caçula, fruto tardio daquela união, alento da mãe, orgulho do pai, com as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, ah, não, isso ninguém em consciência podia imaginar! Teve vontade de aproximar o rosto e sussurrar no ouvido da mulher: não se preocupe, as coisas vão melhorar. Aquelas chagas no corpo da filha não seriam um sinal? Um sinal de eleição, de escolha divina… Os homens não marcam o gado a ferro? Deus não poderia marcar os seus de um modo semelhante? Mas não, não disse nada. Estavam rezando, não podiam falar, não deviam nem mesmo pensar.

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

Ajoelhado, Zé Candonga abriu os olhos culposos e se deparou, logo à frente, com as figuras de seu Boleslau e dona Florentina, igualmente ajoelhados. De repente, deixou de afligir-se com os seus tormentos e sentiu pena daquele casal de meia-idade, cabelo já mais branco que loiro, no rosto os traços inelutáveis do tempo. Mas por detrás daquelas faces escalavradas resistia um coração de carne, ele bem sabia. Se não fossem os dois, o que seria dele, Zé Candonga, quando a mãe o abandonara atrás de um malaco? Teria sido mandado pelo pai – coitado, mergulhado na canguara – para a casa dos avós pobres, no Norte Pioneiro, ou então zoroteado, guacho, pelas estradas da vida, descolando um bico aqui, um biscate acolá, se não tivesse sido admitido por seu Boleslau como empregado, hoje quase um membro da família. Com eles ganhara não apenas um teto, com um leito limpo e seco, como também apreço, arrimo, amparo. Já até experimentara outros trabalhos, outros patrões, mas ali sim era a sua casa, o seu lugar. 

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

E que filha eles tinham, que filha! Parecia uma nossa-senhorinha, muito direita, muito correta, com os peitinhos – de mamicas rosadinhas, ele vira – despontando sob a blusa. Agora, porém, ele constatava, com fascínio e terror, que a guria era muito mais que uma polaquinha ajeitada, que uma piguancha vistosa: ela era uma santa, uma santa de verdade, em carne e osso e chagas… Diante disso, ele renunciara de vez a qualquer pretensão que um dia pudesse ter alimentado de vir a se unir a ela e assim – ele que não era polonês, nem ucraniano, nem alemão, nem nada – tornar-se um Klossosky, já que o outro filho era um desnaturado, um renegado, que não dava mostra alguma de se importar com os seus. Ah, mas de toda forma, ao lado deles ou nos cafundós do judas, ele seria eternamente devotado àquela família, a seu Boleslau, a dona Florentina, seus verdadeiros pais, mas principalmente a sua filha, Rosália Klossosky, genuína santa em carne e osso e chagas vivas… 

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

E tem mais: a partir daquele dia ele ofereceria a Deus, no silêncio doido e doído de seu íntimo, a sua inconfessada paixão – nunca o contara à Rosália, também nada revelara ao padre, ai dele, outro pecado –, junto às pisaduras que a menina, conforme dona Zenóbia explicara, oferecia pela salvação das almas. Realmente, não poucas coisas nesta vida são de difícil entendimento: a paixão e o sofrimento, com certeza, estão no começo da lista. Por que a gente se apaixona por uns e não por outros? E por que é necessário que pessoas de bem sofram – como Jesus, Rosália, o pai – para que outros, inclusive malandros, pelintras, malacaras, se salvem? Antes da oração, dona Zenóbia – aliás, uma dita-cuja insuportável, ai, outro pecado, perdão, Senhor – afirmara que o braço da ira de Deus estava para cair sobre a humanidade e quem ainda o segurava era Nossa Senhora e almas como Rosália. Por que, meu Deus, esse a quem se suplicava tanta misericórdia tinha o diacho de um braço assim tão pesado?

– Pela sua dolorosa Paixão, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.

De uma coisa, porém, Zé Candonga estava certo: mesmo sem saber por que se aplicava a palavra paixão aos sofrimentos de Cristo, entendia perfeitamente que toda paixão, seja ela qual fosse, é dolorosa… Assim, com a cabeça em tal redemunho – alma vítima, coração de carne, dolorosa Paixão –, deslizou entre os dedos calosos a última conta da primeira dezena de um terço de resto bem diferente (e melhor: mais rápido) daquele que o padre Estanislau lhe havia ensinado naquele mesmo dia. Aliás, este, ele já rezara um e meio, havia pouco, de joelhos ao pé da enxerga, na sua meia-água sombria, entre tonturas, zoeiras e ataques do tinhoso como ele nunca imaginara fosse possível. Ah, mas ele estava disposto a rezar os três inteiros no dia seguinte, já que lhe parecia agora que cumprir a penitência por etapas não era lá muito correto.

Alguns minutos depois, chegando ao final dos cincos mistérios, todo o grupo recitou, aumentando ligeiramente o tom da voz:

– Deus santo, Deus forte, Deus imortal, tende piedade de nós e do mundo inteiro.

E seguindo as instruções do santinho previamente distribuído por dona Zenóbia, repetiram este rogo mais duas vezes, solenemente.


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Mais sobre a obra

Uma criança alçada a santa, um padre em crise com a própria fé e uma investigação sobre a doutrina de kenosis. Um tríptico narrado a várias vozes, Forte como a Morte, novo romance de Otto Leopoldo Winck, pincela uma história a partir da manhã na qual Rosália Klossosky acorda com misteriosas manchas vermelhas em ambas as mãos.

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