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o pai chora (ISO 9001), por Luan Michetti

por Luan Michetti
Arte: Head of a Gypsy Boy, de Ladislav Mednyánszky.

Luan Michetti tem 24 anos, nasceu e reside em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Não é juiz, advogado, mestrado ou doutorado. Fez, sem terminar, uma graduação em Tradução. Publicou em 2022 seu primeiro livro, Lidocaína Sabor Laranja, pela editora Urutau. Publica agora A Morte Conforme Conta a Corrente, seu primeiro romance, com a editora Mondru.


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o pai não tem culpa, cê sabe, cê sabe que o pai fez o que pôde, o pai trabalhou demais e não é que eu fui um pai presente, isso eu nunca fui, eu assumo, eu tinha que trabalhar pra sustentar a casa e, cê sabe, eu nunca deixei faltar nada porque sempre te dei tudo do bom e do melhor, igual minha mãe falava, falava que ‘só tem duas coisa pra se ter vergonha na vida, uma é roubar e não conseguir levar e a outra é faltar arroz dentro de casa, que nunca é pra deixar faltar,’ e eu nunca deixei, eu só soube trabalhar, então por isso eu te falo que eu não pude ser um ‘pai presente’ igual diz o outro, e às vez eu chegava e não podia te dar atenção, mas o pai fez tudo o que ele pôde pra te dar tudo de bom e do melhor, pr’ocê e pra sua mãe, que ficava em casa pra cuidar d’ocê, e eu acho que é por isso que cê pende mais pro lado dela às vez, que cê defende ela, cê privilegia ela que é sua mãe e eu entendo também porque quando eu perdi minha mãe, sua vó, cê lembra, foi duro porque mãe é uma só, ela era sempre rígida e eu puxei isso dela de gostar de tudo certo, eu gosto das coisa certa e não é certo isso que cê tá fazeno, faz isso c’o pai não, Lu, se o pai fez o que fez foi pel’ocê, se eu fui isso ou aquilo, cê não vê o meu lado porque eu fiz tudo e trabalhei dia e noite, entre aspras, hora extra, férias, quando tavam implementano o ISO eu tinha que sair da minha máquina pra ouvir conversa lá na sala dos RH, era reuniãozinha, era coisa de botar luva, botar borrachinha na orelha, coisa que cê sabe que eu odeio, ouvir conversa do filho do patrão, eu chegava em casa estressado, que cê sabe o seu Londan quis modernizar a firma, a firma que eu ajudei ele a montar e saí dela sem nada, mas tudo bem, Deus sabe o que faz, eu que ensinei todo mundo que tava trabalhano lá, mais de vinte anos de firma, tendo que ouvir neguim que eu ensinei falar que sabia de coisa mais que eu, mas eu continuei trabalhano, eu só sei trabalhar, e tudo pra dar tudo do bom e do melhor pr’ocê, eu te dei tudo do bom e do melhor, aí cê vai e pende pro lado da sua mãe e escolhe ela igual aquele dia que cê me deixou pra fora de casa e chamou a polícia, eu nunca esqueço, cês chamaro duas viatura pra mim, e dar valor mais pra ela que pra mim sendo que ela nunca fez nada pr’ocê porque eu dava tudo, quem sempre deu tudo fui eu, quem sustentou ocê, eu sustentei ela e ela só gostava de passear, passear, passear, gozolar a vida, ainda só sabe disso, eu nunca passeei na vida, Luan, eu nunca gozolei, cê sabe, eu tinha que trabalhar e tinha que acordar cedo, tinha que sustentar a casa, antes disso já tinha que ajudar minha mãe, chegava em casa cansado e nem querer ter filho ela quis, sua mãe, cê sabe dessa história, eu te contei que quando a gente foi pra te adotar ela falava que não queria ter filho e eu que fui atrás e te adotei, eu te peguei na mão assim e olhei pro seu rostinho e cê olhou pra mim como quem diz ‘me leva, me leva,’ e eu chorei, o pai chora só de falar ó, é que eu te amo, moleque, eu te amo demais e eu não tive culpa, só que cê pisa na bola comigo, cê anda pisano na bola comigo dano valor só pra sua mãe, eu quero ver quando eu morrer se cê vai dar valor em mim e vai olhar pra trás e falar ‘alá, meu pai fez tudo o que ele fez pra me dar tudo do bom e do melhor e me dar estudo e isso e aquilo, que é o que ele não teve na vida e falou que ia me dar, e eu não dei valor pra ele em vida’ só que aí vai ser tarde demais, já vai ser tarde, porque eu já vô tá no caixão igual a minha mãe tava no caixão quando meu irmão quis pedir perdão pra ela, aí eu quero ver se cê vai dar mais valor em mim que na sua mãe que nem quis pegar ocê porque cê tava doentinho e ela falou ‘será que não tem outro,’ falou mesmo, cê sabe, mas eu queria ocê porque cê olhou pra mim, ocê a ultima vez que cê veio aqui, não, a última vez o que que cê fez? cê falou ‘é o filho queridinho’ lembra? cê falou isso pra mim, ‘nasceu morto, nasceu com bronquite, nasceu com asma, ficou três meses internado’ cê não lembra? cê sabe, cê falou, cê não botou aí? tá gravano? o resto eu não vou contar não, o resto cê sabe, cê quer fazer um livro faz do seu jeito, o resto cê sabe, cê sabe que eu me orgulho muito de ter um filho com’ocê com estudo e a gente às vez tem uma desavença mas isso é coisa de Deus lá no céu porque se a gente não tiver uma desavença ou alguma coisa assim a gente não vive, igual com marido e mulher, tem que ter sempre uma desavença uma briguinha, mas cê vai escrever um livro meu? mas eu tenho que contar a história toda? não, aí eu vou mexer c’ocê cê não vai gostar, mas eu te amo cê me ama, então vamo lá, então é que eu fui no médico um dia e quebrei o braço e tinha que trabalhar, eu tinha que trabalhar com doze ano, eu acho que quando eu quebrei o braço eu não trabalhava, não, trabalhava, trabalhava sim, aí eu fui cresceno, cresceno, tinha que trabalhar e comecei a trabalhar com dez ano na fazenda c’o meu pai que foi contador dos Lunardelli, da família Lunardelli, isso, nisso fui cresceno e tive que tirar carta o que foi uma guerra, mas antes estudano, fui estudano, estudano, tinha que pegar estrada de terra, aí eu virei pra minha mãe e falei ‘ou eu trabalho ou eu estudo ou eu faço tiro’, e na época cê tinha que fazer o tiro de guerra, aí eu parei de estudar e ela falou ‘mas é meu sonho te ver formado’ e eu ‘eu ainda vou dar o diploma pra senhora, que é a minha aposentadoria’ porque minha aposentadoria é meu diploma, eu não tive estudo, eu tive cabeça, aí conheci ocê que é um filho que eu amo muito e que eu adoro e eu fui casado com a sua mãe vinte anos, ela mora na minha casa, a casa que eu construí sozinho, não me importei, ela que nunca trabalhou na vida e me tirou metade de tudo que eu tenho, sou aposentado, trabalhano aposentado, tô trabalhano, mais ou menos, ajudano meu irmão, se eu quiser eu vou se eu não quiser não vou, aí vou ajudano, que ele tem umas máquinas que tão paradas e eu quero que cê vai me ajudar também, ele tem uma batidinha igual a que eu te ensinei, é, já, já tem cliente, as faca, os clichê, tudo, tá fora de mão pro seu Londan manter as batidinha que agora tudo é nas offset e na HP, ele falou, mas sempre tinha cliente comigo lá e tá tendo lá no seu tio também, tô ajudano, trintecinco anos eu trabalhei mais quinze anos na luta pra tirar minha aposentadoria, chão ein, é, cê vai imprimir isso aí e me dar? eu tinha que acordar cedo, quatro horas da manhã, chegava em casa cansado bodeado e tudo que eu queria era tomar uma cervejinha e descansar e por isso eu não pude ver cê cresceno, mas tudo que eu não tive eu vou te dar
[…]
qual é o nosso dilema? cê não lembra? lembra, é ‘number one,‘ o que eu não tive eu vou te dar, põe isso na sua cabeça, já te falei, cê não lembra? Lu, Lu, filho, tudo que o pai fez na vida foi pra dar pr’ocê, eu sempre dei, sempre tudo do bom e do melhor, eu trabalhei demais e eu não quero perder pro governo tudo que eu conquistei na minha vida, põe isso na sua cabeça, por isso eu vou passar tudo pro seu nome, eu não quero perder tudo que eu construí na sua vida, eu tenho que largar pra alguém esse alguém quem que é? é ocê, Luan, presta atenção, Lu, Lu, presta atenção, tem dinheiro, eu não tenho dinheiro em mãos mas tem pra receber, tem dinheiro, é cê que tem que resolver isso aí e tem que ir lá e ir atrás dessa merda, vai atrás do precatório, é um dinheiro seu, não é meu não, é uma coisa que eu briguei e cê é meu filho, vai brigar por isso aí, entendeu? tem centevinte mil reais, vai ocê brigar por isso aí, carai, vai brigar por essa merda, pega meu nome, pega seu nome, pega meu precatório, vai entrar nessa merda aí, o dinheiro tá liberado, os cara acha que a gente é trouxa, ô Lu, Lu, tô te pagano faculdade, tô te formano pra doutor, cê é juiz, cê é advogado, cê tá fazeno mestrado, bacharel e doutorado, corre atrás, vai atrás, fala lá c’os seus professor, eu te dei meus número tudo, te dei os documento, se eu morrer ninguém leva nada, ninguém vai tirar nada que é seu só que cê tem que fazer alguma coisa senão esse dinheiro tá perdido, perdido não, entre aspras, cê tem que correr atrás, tem o carro aqui que eu já te dei, não te dei, mas é seu, corre atrás, pega seu nome, pega meu nome, faz o diabo a quatro que tem que fazer, o dinheiro tá lá, não sei o que cê tá arrumano, carai, vem aqui, tem um dinheiro pra receber e cê anda brigano comigo, tem quase duzentos mil real pra receber, numa semana que cê vir aqui cê resolve tudo isso, é cê quem tem que receber, cê é meu filho, eu não sou seu pai? cê não me considera como pai? o que eu tenho é seu, faz o que tem que fazer, te mando o da passagem, deposito na sua conta direto no banco, procura ver o que tá aconteceno que eu não sei que merda que tá aconteceno, cê tem o conhecimento com professor, tá todo mundo me ligano aqui, é banco, é Claro, é financiadora, que o dinheiro tá na conta, que tem coisa, tem coisa aconteceno e eu não sei, que vai sair e vai sair na minha conta porque tá no meu nome mas o dinheiro é seu, vivo ainda tudo bem, mas e se eu morrer? e se eu morrer? cê pensou? se eu cair morto aqui aí já era, todo mundo perde tudo e cê fica sem nada também, é, então, e aí? só que quem tem que por a mão na consciência disso aí é ocê, e aí, como é que fica? cê sabe que eu nasci morto, passei três mês internado, ‘o queridinho da dona Anísia’ igual cê falou aquele dia, Luan, eu tô doente, eu tô passano mal, eu perdi meio pulmão, cê sabe, sua mãe sabe, sua mãe já me tomou tudo que é meu, me tirou a casa que é minha e ela devia tá pagano aluguel, eu tirei ela da rua, ela morava em pensão quando eu conheci ela e trabalhava na Mesbla ainda, ganhano quase nada, dei casa pra ela, dei tudo do bom e do melhor pra ela e pr’ocê e quando cê nasceu, a gente pegou ocê, ela queria continuar trabalhano pra fora e pagar alguém pra ficar c’ocê e eu falei que não, que o dinheiro ia ir tudo pra isso, que era pra ela ficar em casa que eu pagava, aí eu sustentei ela e ela me fudeu tirano tudo que é meu, morano na casa que é minha, e agora cê tá me fudeno também porque cê pende pro lado dela e o governo tá me fudeno e vai tirar tudo, aí cês vão ficar sem nada também, porque cês só me procura quando é pra pedir dinheiro, o governo vai me tirar tudo que é meu quando eu morrer, quando eu morrer não vai ficar nada, e eu tô morreno Lu, Lu, Lu, o pai tá mal, o pai tá doente, eu tô morreno, eu acho que eu tô com câncer de novo, eu tô com câncer, eu não quero ver, eu não gosto de médico, cê sabe, mas eu tô sentino que eu tô com câncer, eu tô ruim, tem noite que eu nem durmo direito de falta de ar, o pai não tem muito tempo não, cês me abandonaram, faz mal não, fico sozinho o tempo todo, e se der alguma coisa? eu te ligo cê não atende, ligo pra sua mãe ela não atende, e se eu tiver passano mal aqui? e se me der algum trem? e se eu passar mal aqui e não tiver ninguém pra acudir? aí cê não sabe, né? aí ninguém sabe, Luan, põe isso na sua cabeça, o pai tá mal, eu não tô respirano, eu não vou no médico, eu não quero ir no hospital, tô só te falano, tô te avisano, vem me ver, dá valor no seu pai, não sei se cê vai ter muito mais tempo comigo não, resolve essas merda aí, cê é meu contador, não sei se eu te contei que encontrei o seu Londan na feira aqui, ele falou que quer que eu vou lá, não falou mas eu sei que era isso que ele queria, me chamano pra visitar lá, falou ‘cê é sempre bem vino aqui’ ele, senti na pele que ele quer que eu volto, mas eu só vou lá se cê for comigo, ele tá me dano valor agora, ninguém sabe mexer lá com as máquina que eu mexia, só falou pra mim aquele dia que as máquina tão tudo parada, ‘tá parada porque o senhor quer’ eu quis falar, que quando eu trabalhava não tava nada parado, mas não sei, Lu, eu só passo lá se cê for comigo, ele tá quereno me chamar de volta e eu não sei se eu vou, Lu, cê tem que me ajudar, cê é meu filho, não é? eu sou seu pai, eu preciso d’ocê pra me ajudar, ele quer me vender as máquina, vinte mil, trinta mil, eu tenho guardado, a gente aluga um lugar, aluga um salão e monta, eu e ocê, eu quero montar uma empresa pr’ocê, eu não quero ocê trabalhano pros outro, eu não quero
[…]
tô chorano, não faz isso c’o pai não, faz não, eu vou morrer pel’ocê, põe isso na sua cabeça, Lu, eu vou morrer pel’ocê, eu te amo moleque, tudo que eu fiz na minha vida foi pra te ver formado, tô te formano advogado, professor, o que cê falou que cê era? isso, tradutor, professor, advogado, tudo, tá tudo no seu nome, cê vai resolver tudo pro pai, é cê quem tem que tomar conta, seu tio tirou tudo meu, seu tio tá sujano meu nome e cê tem que resolver, ninguém quer tomar a frente, tá todo mundo brigado, fudeu seu vô, fudeu sua tia, agora quer me fuder, tá deveno mais de cem mil reais no Bradesco, cê sabe, cê foi lá comigo, cê que viu, tá deveno mais quarenta mil no Magazine Luiza, fez empréstimo, financiou carro, tá viveno lá na mordomia, que ele só sabe fazer isso, Lu, eu vendi o carro pra tirar ele da cadeia e ele não me pagou, ele tá me deveno mais de oitenta mil real, cem mil, bem dizer, cê quem tem que resolver isso, liga pra ele, cobra ele, eu já falei que cê tá correno atrás, falei que cê é advogado, detetive, que tá veno tudo, que vai processar ele, porque ele me fudeu, eu dei o cartão pra ele porque ele saiu da cadeia, emprestei o dinheiro que a sua tia tava me pedino, veio aqui chorano que era pra tirar ele, ele tava cuidano da minha conta no aplicativo, Lu, liga pra ele, ele não me atende, cê não me atende, sua mãe não atende quando eu ligo, eu me-odeio isso, tem celular pra quê? ele sabe que é meu número e não atende, por que cês não me atende? toda vez que eu ligo só dá ‘deixe sua mensagem, deixe sua mensagem,’ porra, pra que que tem essa bosta? te dei pra quê? joga essa merda no lixo então, cê e sua mãe só quer saber de joguim, e joguim-joguim e ficar de fone de ouvido, celular é pra ligar e atender, só, ligar e atender, eu xinguei, eu xinguei ele mesmo de tudo quanto é nome e ele sabe, eu vou matar esse moleque, eu vou pegar ele se ele sujar meu nome, eu nunca devi nada na minha vida, sempre paguei tudo à vista, o importante é ter nome, eu nunca tive o nome sujo, sua vó sempre me falava ‘o importante é ter nome,’ ele tá fudeno meu nome, meu nome, seu nome, o nome do vô, Lu, tô aposentado de tanto trabalhar, de tanto ralar, graças a Deus, cê é meu filho, faculdade, eu sempre quis, meu sonho era ver cê formado, eu sempre te falei ‘eu vou te dar tudo o que eu não tive‘ e eu queria te dar o estudo que eu não pude ter porque a gente começou a trabalhar cedo, minha mãe precisava, eu escolhi entre estudar e trabalhar pra dar dinheiro pra ela, ela era meu banco, todo filho homem tinha que trazer dinheiro pra casa e na sua idade eu já dava meu dinheiro tudo na mão dela, ela guardava tudo em casa, eu só fiz até a terceira série, eu não sou burro não, fiz até a terceira série e sou bom de matemática, ein, eu sei fazer muita conta, sou burro não, a professora dava a prova e a sala era cheia de repetente e ela falou ‘Serginho‘, ela me chamava de Serginho, ‘cê tirou C porque não estudou nessa matéria,’ ela falou, e ela não tinha dado essa matéria, quem sabia essa matéria era só os repetente, tava cheio, por isso eu saí da escola, no dia da sua formatura a gente vai se abraçar muito, ó, eu tô chorano, qual é o nosso dilema? number one, tem que ser o number one, o que eu não tive eu vou te dar, mas faz esse favor pro pai, vai atrás desse dinheiro, esse dinheiro é seu, a aposentadoria tá caino na conta e o banco já pega porque ele ficou de depositar e não deposita, faz dois mês já, porque eu tenho muito orgulho d’ocê, independente do que o pai fala, se a gente briga ou não, perdoa o pai, porque eu passei muita dificuldade e eu quero, quero mesmo, Lu, Deus sabe e há-de-ajudar, que cê tenha tudo do bom e do melhor, eu fui criado numa família muito rígida, com sete anos eu tive que trabalhar, fiz só até a segunda a série, eu não tive estudo, eu tive cabeça, meu pai sofreu pra me criar, mas eu quero ver cê formado se Deus me der essa oportunidade, graças a Deus eu vou ter, tô chorano já, ó, é que eu te amo, faz isso c’o pai não, é como diz o outro né, é Deus no céu e o filho na terra, eu só quero te pedir uma coisa, eu só pedi pra uma pessoa, Deus sabe disso, só te peço uma coisa, Lu, não me deixa eu ser enterrado não, faz esse favor, não me deixa ser enterrado, me crema, eu não quero ficar na terra, me crema, eu não quero apodrecer no chão não, eu fico pensano na minha mãe, me crema, eu tô mal, eu tô nas última, cê não tem muito mais tempo com seu pai não, Lu, eu só te peço isso, me crema, eu tô com câncer, eu perdi um pulmão, já tô perdeno outro, faz isso c’o pai não, me crema, não pisa mais na bola comigo não, cê pisou na bola, cê me meteu aquele processo, tira ele, Lu, faz esse favor pro pai, tira o processo que cê fez aí em Mariana, eu nunca te neguei nada, nunca pisei na bola c’ocê, se eu falei que eu ia te pagar a pensão é que eu ia, não precisava, eu nunca te deixei faltar nada, cê é igual sua mãe, sua mãe fez um B.O. contra mim, duzentos metro, trezentos metro, aí quando precisa de dinheiro me liga, cê só me liga quando quer alguma coisa, mas tudo bem, ‘águas passadas’ como diz o outro, só que aí seu tio fez isso comigo já faz um mês e cê ainda não veio aqui pra resolver isso pra mim, tô te formano pra quê? se cê não pode me ajudar, se cê não vai me ajudar em nada, eu sei que cê vai me abandonar assim que tirar o diploma, é esse o seu sonho, se ver livre de mim, eu acho que cês querem ver eu morto, cê já falou isso, cê já falou que me odeia, tá gravano? tá gravano a ligação? que cês tem essa mania de gravar no celular, eu não sei mexer com essas bosta, cês tem mania de falar que eu falo demais, que eu isso e aquilo, não, é que eu gosto das coisa certa, e cês faz tudo errado, cês não sabe viver, tem que virar homem, se cê não vier aqui essa semana eu não vou mais pagar sua faculdade, eu vou te cortar tudo e te tirar da faculdade aí cê vai ter que trabalhar igual eu sempre trabalhei, a minha vida toda, porque cê não dá valor, cê não dá valor em nada, cê acha que é inteligente porque tem estudo mas é burro, tá gravano? pode gravar, vai chamar a polícia também igual sua mãe faz? cês só sabe me fuder, perdi um pulmão, não é que eu falo demais é que eu gosto das coisa certa e cês não faz as coisa certa, cê não sabe ser homem, cê me meteu um processo falano que eu não ia mais te mandar dinheiro, vai desligar? só isso que cês sabe fazer
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Lu, não conta pra ninguém o que eu tô te contano, Lu, que cê é meu advogado, cê é juiz, é delegado, bacharel, doutorado, eles tão atrás de mim, eles pegaro meu nome lá, já viero aqui em casa perguntar, falaro que bateram aqui com os oficial de justiça, ligaro pra minha advogada, viro eles aqui na porta, os vizinho viu, tão me ligano, eles te ligaro? se eles te ligar não atende, não atende, Lu, não atende número que cê não conhece, fica quietinho no seu canto, eu matei um cara lá em Belo Horizonte, eu matei, eu matei um cara, eu tava subino a escada da rodoviária pra entrar lá pela porta pra pegar o outro ônibus, ó, não conta, eu tava fumano um cigarro porque eu tava sem fumar a viagem toda e ele veio me pedir um isqueiro e eu já ligado, eu tava com a mochila que cê me emprestou, ele pediu o isqueiro e eu vigiano, Luan, se te ligarem não atende que é de BH, eles perguntaro, eles me fizero assinar, eu só pedi pra eles me soltar por favor que meu ônibus tava chegano e era mais dez horas de viagem e era o último da noite, o das dez e trinta, não, minto, dez e vinte, eles não queria me deixar ir embora, aí eu falei seu nome, eu falei ‘eu sou pai do Luan Michetti, advogado, juiz’, Luan Michetti, ó o nome, igual aquela história, aquele jogo um dia Alemanha 3×1 Itália, na copa, cê sabe qual foi? dá pra ver aí na internet? pesquisa, é, é isso mesmo, acho que é, oitentedois, ‘e aí pai,’ eu perguntei, cê sabe essa história, ‘pra quem a gente vai torcer?’ e ele respondeu ‘qualquer um pra mim tá bom, eu sou italiano de descendência alemã’, o importante é ter nome, eu falei pro cara ‘tô voltando de lá da Federal que ele dá aula, qualquer coisa fala com ele, ele tá lá na Federal’ aí eles deixaram eu ir, foi só eu falar o seu nome, ó, o pai chora, mas eles vão vir atrás de mim, eles tão vino, ele quis pegar a mochila e eu caí no chão com ele e a gente lutou, rasgou tudo ela, vou te comprar outra, seu tio me ameaçou que ia me denunciar se eu cobrasse ele de novo, eu contei pra ele, ele veio aqui ontem, eu perdi um sapato, tô todo roxeado aqui, depois eu falo pra alguém te mandar uma foto no seu celular, viajei com um pé só, tô fudido, mas eu matei o cara, eu dei uma no peito dele que ele não levantou nunca mais e os segurança viu, tem câmera, ele morreu, Luan, eu matei ele, era casqueiro, acho que não fizeram nada porque era casqueiro, igual quando implantaram o ISO tinha nego que andava pra lá e pra cá igual bam-bam-bam porque isso e aquilo, eu só no meu cantinho, eu que ensinei todo mundo que tá lá, que tava, tanto os que tava quando os de recente, eu que montei aquela firma e o seu Londan me ofereceu ou me dar a máquina ou vinte mil, Lu, cê lembra? cê falou pra eu pegar a máquina mas aí a gente pegou o dinheiro e aí o safado do canalha do filho da puta do seu tio, meu irmão, me tirou o meu dinheiro porque eu fui lá tirar ele da cadeia, a mulherzinha dele veio aqui pedino dinheiro emprestado e eu emprestei, aí quando o vô morreu e cê tava lá pra Mariana eu aproximei e deixei ele cuidar das contas, fiz um cartão pra ele como dependente do meu, deixei na mão dele pra emergência, não, ele tirou da minha mão, agora isso, porque que isso tá aconteceno comigo? me diz, por que que Deus deixa essas coisa acontecer? tá tudo aconteceno, eu não tô entendeno, acho que o Londan até já vendeu, porque, cê lembra, quando a gente foi lá ele tava fechano a parte do salão, falano c’ocê de ‘honério’, ‘inébrio’, ‘funéreo’, não foi? falano que vai manter o plano de saúde por consideração, que eu tô precisano, eu não entendi, acho que ele tá com medo d’eu morrer, tá todo mundo com medo d’eu morrer, porque eu tô mal, Lu, e agora com essa pancada eu tô com falta de ar, mas eu não vou no médico, eu não quero ir, eu só vou se cê for comigo, Lu, sozinho eu não vou não, quero que cê vê o que ele tem pra falar, não, eu não vou, de jeito nenhum, eu não gosto, cê é meu médico
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aí o médico falou ‘o senhor tá com um tumor benigno alojado no meio das costela,’ tumor benigno é câncer, cê lembra? cê sabe, cê era novo mas foi lá, eu não gosto de ir em hospital, cê foi comigo, lembra? e na hora de fazer a cirurgia ele viu que tinha que tirar um pulmão e meio, eu só tenho meio pulmão, Lu, minha mãe, Nossa Senhora, Deus, Jesus Cristo, todo mundo quer que eu vivo, eu não quero viver mais não mas se eu ainda tenho o que fazer eu obedeço lá de cima e o que eu tenho pra fazer ainda é te ver formado e com diploma, eu quero atingir o meu teto, trabalhei, é como diz o outro, fiz o que eu tinha que fazer, te dei tudo do bom e do melhor, se Deus pôs lá em cima ‘perdeu dois pulmão’ e não morreu é coisa de Deus, quem decide é Deus, cê é estudado cê sabe, cê faz faculdade cê sabe, o nego tá lá em cima, põe isso na sua cabeça, o livro tá lá em cima, na mão de Deus, só Deus que decide, é isso que decide, mas eu tô sentino que eu tô com câncer de novo, não sei, não sei se aqui, ó, meu pulmão tá doeno de novo, como eu não tive estudo, eu tive cabeça, põe isso na sua cabeça, às vezes eu gosto de chegar e tomar uma, mas quem não gosta? quem manda é Deus, por mais cagada que ele fez, por mais cagada que eu fiz, eu não, ele que fez essa cagada, não emprestei o cartão pra ele, ele pegou da minha mão, eu fiz pra ele mas ele pegou da minha mão e fez essa cagada, é Deus que decide, é lá em cima, por que que eu tô vivo hoje, por que que eu tô aqui na terra hoje com meio pulmão só? é Deus, aqui se faz aqui se paga, se eu tô aqui até hoje é porque Deus me deixou pra te formar e te ver formado, eu quero pagar a sua festinha igual eu falei, mesmo que cê falou aquele dia, cê lembra? que cê falou que não queria festinha, mas o pai quer, o pai quer ver nem se for aqui em Ribeirão mesmo, quando eu te formar Deus vai falar lá em cima ‘chegou a sua hora’ porque eu só tô vivo até hoje pra ver ocê formado ‘porque cê pôs um filho no mundo, cê vai formar, cê tá aqui na terra pra formar seu filho’ igual eu te falei, porque o que eu não tive eu vou te dar, eu só soube trabalhar, eu não tenho estudo, entre aspras, não sou burro não, mas eu não tenho estudo, meu estudo foi criar ocê, eu vou dar aula um dia pros seus professor
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cê só tomava leite de cabra, só esse leite que podia dar, só Zimil, e só achava no Gimenes e um dia tinha no Carrefour, uma vez teve que puxar de São Paulo, mas era o olho da cara, cê também só podia ovo de pata, depois já podia dar Nan mas também era caro, a gente fez inseminação na sua mãe e ela tinha que tomar injeção igual a Fátima Bernardes e a Xuxa porque o ovário da sua mãe era infantil, a gente vendeu minha casa, sua mãe tinha duas linhas de telefone que ela ganhou trabalhano no shopping e ela vendeu também e não deu certo, única opção foi adotar, ‘única opção, não tem jeito?’ a sua mãe, a única opção era essa, o médico, a médica, falou ‘não tem’, aí foi isso, inscrição na fila de espera, que pra menina é maior, perguntaram ‘qual é a sua preferência?’ e eu falei ‘não tenho preferência, só quero ser pai,’ eu falei ‘eu quero ser pai’ e a mulher falou então, depois de um tempo que a gente ficou esperano, ‘vai ter uma audiência aqui c’ocês’ e cê tava feinho mesmo, pneumonia, asma, sinusite, amigdalite, todos os ‘ite’, cê chamava Gabriel, cê tava no Caribe, na Fundação Caribe, cê sabe que eu não tenho culpa, eu sei que às vezes cê é revoltado com isso, igual quando eu tinha uns dezoito já, minha mãe já tinha vindo de Londrina, a gente morava na Vila-Carvalho essa época, seu vô fez uma cagada comigo, ele foi pra Cuiabá de Jardinópolis, ele trabalhava na matriz da Copagaz, era uma viagem que ele fazia em três dias e não podia deixar o caminhão em casa já que ele tava perto em Jardinópolis, ‘pai deixa de ser besta, eles vão te arrumar outra viagem,’ dito-e-feito, o caminhão voltou cheio pra Jaboticabal, chegou lá, eu e ele carregou os botijão cheio e teve que pegar o caminhãozinho da filial pra garimpar os botijão vazio dos comércios da cidade, tudo sem descanso, então eu já trabalhei, eu já ralei muito na minha vida, quando eu te adotei a assistência social, o casal de assitente me perguntou e perguntou pra sua mãe ‘me conta uma coisa da sua infância,’ tava na ficha deles perguntar, e eu ‘eu só soube trabalhar
[…]
não é eu que sou grosso c’ocê não, por que cê é grosso comigo? tem hora que parece que cê me odeia, parece que eu não sou seu pai, eu tô largano tudo na sua mão, cê tem que se virar, cê tem que dar um jeito, eu não sei, Lu, Lu, Lu, dá um jeito, eu não quero perder tudo que eu tenho c’o governo ou c’o seu tio, cê é filho homem e não tem direito a nada, fosse filha mulher eu ficava quieto, mas cê é filho homem, o importante nessa vida é ter nome e eu tenho nome, Michetti, valoriza o Michetti, eu vou te formar, vou te dar um escritório, vou te dar tudo, cê vai tocar a firma junto comigo, o seu Londan tá quereno me vender as máquina e eu vou comprar as máquina pra nós trabaia junto, qual é nosso combinado? ein? qual é o nosso dilema? o que eu não tive eu vou te dar, number one, tem que ser o number one, eu não tive nada na vida e eu vou te dar, a sua mãe não te dá um centavo e cê dá mais valor nela do que em mim, um dia cê vai me dar valor, eu sei, só que já vai ser tarde demais, eu trabalhei cinquenta ano, por que tá todo mundo quereno me fuder? ele veio me perguntar se eu tava trabalhano, o seu Londan, e eu contei que tava lá com seu tio, não o tio que me roubou, que só tava ajudano ele, falou ‘que bom, Sérgio, é bom te ver trabalhano, porque às vez quando a gente fica sem ocupação a gente piora, às vez a gente não quer assumir um vício que tá acabano com a nossa vida, né, Sérgio, quanta gente por aí a gente não vê’ a gente tava falano dum amigo nosso, ‘parou de fumar?’ ele perguntou, mas ele sabe que eu não parei de fumar e eu não entendi o que ele tava quereno dizer, não entendi nada, e cê falou que ele tava tirano sarro da minha cara porque eu sou bêbado, eu não sou bêbado, eu bebo uma cervejinha de vez em quando, eu trabalhei a vida toda, eu só soube trabalhar, cês tem mania de falar isso de que eu sou bêbado só porque eu gosto de beber uma latinha de vez em quando, em casa, eu nem gosto de beber em bar, mas eu acho que ele queria eu de volta, Lu, eu senti isso dele, cê não sentiu? falou que eu podia ir lá qualquer dia, que a porta tá aberta, as máquina tava tudo empoeirada, Lu, dava dó de ver, cê viu? cê chegou a ver? ele não tava achano quem comprava no preço que ele colocou porque eu cuidei direitinho, tá tudo conservada, Lu, Lu, lutar igual eu lutei? acordar de madrugada, dormir na firma? nem horário de almoço eu tive, tinha dia, trabalhar em pé o dia todo, alguém trabalhou igual eu trabalhei, sessenta ano, me diz, por que que isso tá aconteceno comigo? como não? cê tem professor, cê tem isso, tem aquilo, cê é professor, advogado, o que que tá aconteceno? me diz, cê não sabe? cê que é estudado não sabe? eu não xinguei ele, não, mentira, eu nem fui na festa da firma, quem falou? quem falou que eu dei vexame? cês só fala besteira, cês só quer me fuder, que eu cheguei bêbado lá? é mentira, tá gravano? eles tão falano isso? tão que ele já vendeu as máquina, cê acha? tem como cê ver no computador? tem como procurar? cê sabe o nome, vê isso pro pai, eu quero comprar, eu quero ver se tem como eu fazer um empréstimo mesmo com o que o desgraçado do filho-da-puta do seu tio fez, vê isso pro pai, eu só te peço isso, tão falano que ele botou na internet, botou não, ele falou que tava guardano pra mim
[…]
cê sabe que eu não tenho culpa, eu sei que às vezes cê é revoltado com isso e quer conhecer sua mãe ou quer conhecer seu pai mas seu pai sou eu, Lu, eu não tenho pulmão, o pai tá ruim, perdoa o pai, eu queria te contar, mas cê é meu filho, o pai tá morreno, cê é meu sangue, eu preciso d’ocê, o pai chora


Arte: Head of a Gypsy Boy, de Ladislav Mednyánszky.

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