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Sândalo vermelho e os gatunos olhos dela, por Camilla Loreta

por Camilla Loreta
Ilustração:  Our reptiles and batrachians, de M. C. Cooke (1893).

Camilla Loreta é formada em Audiovisual e História da Arte, em São Paulo.  Pesquisa a escrita o corpo e a imagem através das artes gráficas e audiovisuais. Dirigiu dois curtas-metragens, Clara e O Silêncio das Pedras. Participou de diversas residências artísticas, entre elas:  The Artist meeting, em Marianowo (Polônia), onde iniciou a escrita do livro Sândalo vermelho e os gatunos olhos dela, em 2016. Atualmente cursa a pós-graduação do Instituto Vera Cruz para escritores de ficção. 


Capítulo 1 — Lago escuro, escavações do esquecimento, os amantes da Lua

Acontece de uma pequena cobra se alinhar na coluna vertebral daqueles que aceitam.

Se você fosse contar sua história, será que assumindo um papel distante a recepção mudaria? Ao se separar dela, simular a falta de tensão, uma espécie de fenda em que quem ouve se entrega de imediato, sendo pego de surpresa na confusão das narrativas, como uma cobra sinuosa que se projeta na água sem sabermos se é matéria ou reflexo.

O quarto de Léia. Ela dorme no colchão apoiado em tábuas de madeira. Lá fora, imóveis, pinheiros altos, macieiras baixas e gramíneas se espalhavam pelo quintal do vizinho. Ainda não dormia tão bem à noite, e acabou caindo no sono depois do almoço. Antes de dormir olhava a paisagem interna. O quarto ainda estava repleto de caixas, as paredes nuas, apenas uma fotografia pendurada com fita adesiva. Era uma imagem antiga de uma montanha ao sul da Polônia chamada Morskie Oko. A foto de uma foto tirada tempos atrás, quando Léia era criança.

Ela estava deitada de barriga para cima, os cabelos enrolados soltos pelo travesseiro. Suas pálpebras se mexiam, os dedos manifestavam pequenas contrações, como quem olha alguma coisa, toca também, e sua respiração aos poucos foi aumentando, e uma pulsação em seu peito cresceu, a pele de seu rosto tornou-se levemente rosada.

Ela acordou de susto. Um tanto perdida com o modo repentino em que voltou ao mundo consciente, olhou para o teto fechando os olhos de vez em quando, como para espantar a sensação de que não estava totalmente acordada. Em seu sonho havia uma cobra verde e preta, estava escuro, uma mulher comandava forças no espaço infinito. Seus pés e mãos ferviam. Apurou os ouvidos, alguma das janelas estava semiaberta, e conseguia sentir um tremor suave do corpo, o vento ausente lhe causava arrepio.

A cama

Eu tinha um sonho recorrente quando criança, que foi evoluindo e mudando de forma conforme eu crescia. Começava sempre com uma cama, sozinha, no centro de um quarto, sempre à meia-luz. Me aproximava da cama, deitava, e era a melhor cama do mundo. Ia adormecendo dentro do sonho, sentindo que o corpo cedia ao colchão, de repente o colchão sumia. Eu continuava deitada no estrado, mas não achava posição para ficar ali. Quando criança sempre arranjava um jeito de acordar, e logo dormia novamente.

Porém, quando me mudei para a Polônia, não conseguia mais acordar, me mantinha deitada no estrado. Com o tempo, no sonho, encontrava boas posições para ficar equilibrada, mas logo meus ossos começavam a doer, e eu tinha que mudar de posição, sem nunca conseguir adormecer dentro do sonho. Acordava cansada, com muita dor no corpo.

Foi em São Petersburgo que tive esse sonho repetido pela primeira vez naquele ano.

Era como sempre, deitada na cama, o colchão desaparecia, e ficava muito tempo tentando encontrar uma posição no estrado para descansar. A madeira aos poucos se tornava macia e possível de se ajeitar, até que começava a sentir um osso doendo ou um músculo dando fisgadas. Às vezes podia encontrar uma maneira de ficar deitada que massageasse um ponto, o que tornava a posição mais agradável, mas logo isso começava a doer demais, e tinha a sensação de que estavam se formando grandes vergões roxos na pele.

Eu tentava me equilibrar bem, para pegar no sono e não me mover, com medo de cair no chão de repente. E logo meu quadril cedia, e minha virilha estalava de tensão. O que me levou a acordar eu não sei, mas sim que a cabeça ficou demasiadamente pesada, e o sol agora batia diretamente no me rosto. A mandíbula tensa, quase solidificada. Abri a boca aos poucos, e ouvi tudo estalar. Os olhos estavam sensíveis. Tive medo de olhar para o lado e descobrir que de fato estava deitada no estrado, mas a sensação das costas era de que estava em um colchão.


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Mais sobre a obra

Em Sândalo vermelho e os gatunos olhos dela, acompanhamos a travessia e o inconsciente da protagonista Léia Stachewski, filha de pai polonês e mãe brasileira, que nasceu e passou a infância no Rio de Janeiro. Após misteriosos acontecimentos vividos pela família, ela retorna à Polônia. No decorrer da narrativa, a personagem decide iniciar uma viagem de carro sozinha pelo Leste Europeu, rumo à Finlândia. Perdida em um território gelado, ela relembra momentos de sua formação no Brasil, origens familiares e motivações.


Ilustração:  Our reptiles and batrachians, de M. C. Cooke (1893).

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