Isto não teria acontecido se Ícaro estivesse dormindo comigo
Quando me falta motivação
para escrever, transcrevo à mão
quem não sofreu dessa falta
exerço essa prática na procura inútil
de uma metáfora
o que poderia ser facilmente resolvido
com amor ou sexo
mas diante dessa falta
ou desta incapacidade
de separar devidamente os dois
o jeito foi recorrer a um poema
escrito por Jack Gilbert
primeiro esbarrei
surpresa
num verso longo:
“qualquer coisa que valha a pena fazer, vale a pena fazer desastrosamente’’
eu insistente
reduzi a grafia
apertei palavras antes
divorciadas, numa única linha
como já fui apertada
por impulsos da mesma ordem
depois foi a vez do amor,
este amor
ou algum amor
que se extinguia
o que logo ocorreu com
os espaços em branco do papel
cada brecha virgem foi invadida
até não caber mais
meu último recurso aconteceu
como geralmente acontece
últimos recursos
em caráter apelativo
de modo a escrever por cima
do que já havia sido escrito
o poema virou o desejo
enorme borro gráfico
deixou de ser
identificável
teve o mesmo contorno
dos meus romances
não houve nenhum desperdício
meu design ecologista
reaproveita
sei que nesse gesto
nada se extingue
por completo
embora não,
não vale a pena
o exercício
embaralhar
todos os meus amores
num único amor
todo o meu sexo
num único sexo
continuei desmotivada
e encarando as palavras assim
trepadas uma em cima da outra
não parecem amantes
parecem entulhos
Ícaro,
nada disso teria acontecido
se você estivesse dormindo
comigo
fico trêmula com isto
isto que me impede de dar
prosseguimento a leitura
acordo e num átimo
a folha voa
falhando
essa desastrosa
metáfora
Mulheres de cinema
A mulher impõe a vassoura
para tirar a poeira acumulada do teto
a segunda mulher tapa os buracos
causados pela infiltração
a terceira mulher segura o martelo
na altura da virilha
a quarta mulher guarda
seus pregos na camiseta
a quinta mulher não pôde comparecer
mas antes edificou as paredes
capinou o terreno
sem descuidar
da fertilidade do solo
fora do quadro
um homem qualquer
fita em panorama
Cacau Costa (1996) é estudante da UERJ, artista, poeta e assistente editorial. Em 2022 prepara o lançamento de seu primeiro livro de poesias. Tem alguns poemas publicados em revistas on-line e impressas.