Imitação da crônica
Ela eu sei que me quisera vender,
certa vez, ovos de Páscoa caseiros
que eu fantasiaria, por gosto,
serem feitos à tarde.
E dela eu sei que,
não fosse agora a chuva,
é certo que ao seu portão se veria,
como sempre, em cartolina:
VENDE-SE GELADINHO
ou outra coisa anunciada à mão,
cursivamente, em canetinhas coloridas.
Qualquer outra coisa,
mas feita à tarde, é claro
(assim arbitro, assim fantasio),
alguma outra iguaria que eu levasse
no engano de auscultar
– nos sulcos do chocolate,
na calda da fruta,
ou no crocante da castanha –
o tilintar da louça que se lava após o almoço,
uma conversa de cozinha,
um café que goteja no coador
e outros rumores de uma tarde inventada.
Mas o que dela
de fato eu ouvi
foi sem preparo,
não foi buscado,
não foi tarde inventada
nem mesmo ouvi no chocolate,
mas disse ela própria
à amiga com quem bebia
quase à hora do almoço,
entre malandros aposentados
e alcoolistas jogando cartas
num boteco de má fama.
Passei à calçada no justo instante
de recolher o que dissera
depois talvez de muito evitá-lo.
E foi num português
quiçá moldado por anos
ao lirismo nulo de dizer do leite,
da carne e da farinha em promoção,
com este português
dando suas voltas
de celofane e teflon,
numa súbita incumbência
de lirismo é que disse:
“… ninguém entende o amor
que eu sinto por minha mãe.
Nem ela sabe o amor
que eu tenho por ela.”
Ouviu-lhe a amiga,
mas também eu
e quiçá os quitutes,
as salsichinhas mini,
os feijõezinhos enlatados
expostos nas prateleiras.
O jogo de cartas
dos malandros velhos
nem se doeu,
mas recolheram as paredes
(assim enfeito)
a ternurinha suada daquela confissão.
Ficou nelas feito o cigarro,
a pinga
e o cheiro dos homens
que se encostam ali.
E assim me fui, satisfeito
em reter finalmente
– feito as paredes,
os chocolates
e os geladinhos –
um rabicho de vida
que não é minha.
Bem cedo aos sábados, uma doidinha
reincidente (como o carro do lixo)
e ligeira (feito ambulância)
passa à rua.
À beira do rio de asfalto
que a suponho cruzar
sozinha em zigue-zague
(apenas suponho,
pois que nunca a vi),
esse timbre antigo de lavadeira
(voz de café fresco
e de folhagem seca)
talha o ar quase palpável
da manhã mal começada.
São seis, são
seis e meia,
e que um certo vagabundo trabalhe
ela ordena berrando
seu refrão insistente
(ao filho morto talvez,
ao filho ausente,
quem sabe ao traste
assassinado do marido).
No entanto,
não acolherá ninguém
a sua ordem,
pelo menos
não agora:
o furor de periquitos
nas folhagens
não lhe sente,
o sono sem sonho
dos prédios
nem se atina
que é sábado,
é cedo,
e que uma voz ferida de lavadeira
rasga a manhã
com o metal da loucura.
Foto de Leopoldo Cavalcante.
Ubiratan Costa é poeta e compositor natural de Goiânia – GO. É formado em Composição pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e autor do livro As Notações do Azul (2021, edição do autor). Integra o grupo Música Íntima, fundado em 2017, e que reúne jovens compositores residentes em Goiânia, junto aos quais lançou o álbum Jackhes, meus amores (2019) e o EP Reverdecente (2020), disponíveis nas plataformas de streaming de música.