ralo
os esgotos que fogem das estações de tratamento
escorrem pelas goteiras de meu conjugado
o rio tem medo de desaguar
o país está em chamas
mas as centrais de ar trabalham incansavelmente
para disfarçar o calor
alguns têm o ventilador arno e as liquidações
em todo o setor de frios do supermercado
e eu tenho a umidade das notícias
eu tenho os mesmos canais
uma música antiga diz que
o novo sempre vem
mas eu tenho certeza que isso não envelheceu
muito bem
os velhinhos nas portas de suas casas
na verdade nunca
tentaram vencer a sujeira das ruas
eu tento furar a greve de ônibus
para encontrar minha dignidade
eu tento não chorar no banco de passageiro
de um motorista de aplicativo
ele se alimenta de balas e esperança
e me oferece desculpas que não sejam tentar
o olhar impiedoso dos caixas eletrônicos
e você
a verdade nas filas de prioridade
e você
a mensagem não escrita
e você
e o país
parece que vai haver uma guerra
o hino nacional mais alto que a música pop
bandeiras mastercard
e velhinhos armados finalmente
mas não é de bom tom
combinar verde
amarelo
e sangue
e nem se esconder no trabalho
afinal meu chefe disse que as coisas
vão melhorar a partir de agora
uma grande onda invadiu a cidade
mas ninguém olhou pela janela
pra confirmar se era rio
ou goteira
e assim os bairros mais pobres
foram dizimados ou convertidos
em investimentos
enquanto trabalho
e no caminho de casa
aprendo a ignorar a previsão do tempo
porque ele nunca passa
e nunca chove por aqui
apenas inunda
e pedir a proteção do cadeado do portão
e da boca aberta no noticiário
que também tentam
descansar
no lugar do motorista
uma palavra
nada
para o país
pessoa número 68
não chega a ser um problema
que a internet seja a única forma
de viver pra sempre
mas eu apaguei todas as nossas conversas
porque eu sou descuidado
minhas mãos se manifestam através
da tremedeira
e da falta de afeto
porque nós somos homens
e eu te deixei morrer
naquele dia eu te vi apaixonado
por outra mulher que não era a sua
mas eu não disse nada
eu gostei de te ver
sentindo alguma coisa que não lembrasse
desespero
porque a confidência dos homens
e o declínio da civilização
estão sempre avançando
e tem tudo a ver comigo
a culpa abandonada no tapete da porta de entrada
a vitória nos sites de relacionamento
depois dos 30
atropelamos algumas temporadas históricas
com teu carro alugado
mas você foi para uma trincheira no meio da Amazônia
e eu fui para uma livraria no centro da cidade
o download nos uniu para além
da falta de emprego
o teu carro deveria ter uma TV no banco detrás
porque sempre tinha alguém lá
mas isso nada tem a ver com solidão
tem a ver com falta de grana
e eu gostei de te ver
matando o tempo
com alguma arma que não fosse a sobrevivência
e também tem tudo a ver com
o momento que você estaciona esse mesmo carro
antes de entrar na sua casa
e ouve aquela música que poderia
derrubar tua masculinidade entre o grupo de amigos
Marina disse que
“você me tem fácil demais”
ignorando o momento em que
eu chorei
no único compartimento vazio da minha casa
em uma outra cidade cheia de ruas altas
ruas baixas
e que nada tinham a ver com montanha-russa
os outros cômodos você ajudou a encher
com histórias de brigas de rua
e cheiro de cerveja
tão lotados que fica difícil respirar
mas você sabe muito bem como é isso
porque você está morto e talvez fantasmas não
precisem respirar
ou trair suas esposas
fantasmas talvez não sejam machos
nem fêmeas
e provavelmente são felizes
porque o inferno já passou há muito tempo
antes mesmo de chegarmos no parque de diversões
perdermos os sinais
e habitarmos os acostamentos
taurina
para quem uma vez disse que o amor morreu
acordamos bem-dispostos
mesmo com as palavras de ontem penduradas
na beira da cama
mesmo com o sol rasgando
discretamente a cortina
o odor fala sobre o mundo inteiro que abandonamos
e a água da geladeira não esquecerá de nós
Foto de Luísa Machado (https://aboio.com.br/tag/luisa-machado/).
André Piñero é professor por formação, poeta por tentativa e inúmeras outras ocupações por sobrevivência. Lançou seu primeiro livro, Copo americano, pela Editora Urutau em 2021. Alguns poemas de seu livro de estreia também podem ser encontrados em revistas e portais digitais como Torquato, Margem, etc. Cabe, porém, não se iludir com o etecetera. Nasceu em 1987 em Belém do Pará. Atualmente reside na capital do Amazonas, Manaus.