Milena Martins Moura (https://aboio.com.br/tag/milena-martins-moura/) é poeta, editora e tradutora, autora dos livros Promessa Vazia, Os Oráculos dos meus Óculos (https://editoramultifoco.com.br/loja/product/os-oraculos-dos-meus-oculos/) e A Orquestra dos Inocentes Condenados (https://www.editoraprimata.com/a-orquestra-dos-inocentes-condenados-de-milena-martins-moura/p), além da plaquete Banquete dos Séculos (https://www.amazon.com.br/Banquete-S%C3%A9culos-Milena-Martins-Moura-ebook/dp/B09B1D5Z62). É editora da revista feminista cassandra e seu selo erótico Héstia e integra as equipes de colunistas da revista Tamarina e de poetas do portal Fazia Poesia.
‘Arīhā
há sempre um prenúncio de soluço
que não cura
os escombros da chuva
lacerando peles
destruindo os telhados
onde se aguardava com provisões o inverno
e esse silêncio de quem tem fome
gestando
soluços
há sempre um farnel
com queijo e com vinho
com dor e com soluço
para o tempo da seca
é preciso reforçar os escudos e as armaduras
com o que mais houver de belo na fortaleza
enquanto houver sussurro
não hão de deitar ao pó
minha amurada
ainda não sei se sou forte
só sei que existir é
como uma dor
e dos espasmos
e dos soluços
dessa tortura
eu tenho feito mistérios
que haja sempre a fogueira de anúncio
para o tempo do risco
e os metais
para o festejo final
e assim
vestidos de fogo e de ferro
de força e de punho
nada mais há de faltar
para o inverno do tempo
quando não cantarão nossos feitos
ao redor do fogo
antes que rompa o dia e fujam as sombras
todas as noites
com o advento das respostas que se descobrem em atraso
ㅤㅤㅤㅤㅤo sopro quente do tempo
ㅤㅤㅤㅤㅤme esquenta a nuca
junto com os feitos que não deviam ter sido
e os maus presságios
que não passaram
de covardia mitificada
todas as noites
a língua do tempo
me lambe o lóbulo da orelha
ㅤㅤㅤㅤㅤa direita
quando me deito para a janela
temendo as luzes rápidas no teto
ㅤㅤㅤㅤㅤa esquerda
quando me deito para o espelho
e não temo senão a mim
todas as noites
as mãos do tempo
correm nos meus peitos
estão secos e caídos para o lado
como um banquete deixado a apodrecer
ㅤㅤㅤㅤㅤpela falta da fome nas bocas
todas as noites o tempo enfia em minha boca a sua língua
ㅤㅤㅤㅤㅤantes que eu consiga recusar
balança a língua
atrás dos meus dentes
onde moram os choros engolidos
e as palavras perigosas
e no fundo da minha garganta
ㅤㅤㅤsente o ácido
ㅤㅤㅤㅤdo meu medo de morrer
ㅤㅤㅤㅤㅤmisturado à amargura de estar viva
o tempo se esfrega
nas partes minhas
que são só minhas para esfregar
ㅤㅤㅤㅤㅤtodas as noites
e a mim mantém desperta
para que não me esqueça
ㅤㅤㅤㅤㅤque todas as noites são noites a menos
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤtodas as manhãs encontro em mim os restos do tempo
fado da criação
apenas dois
olhos
fracos
se interpõem
entre mim e o
escuro
e eu que
nunca
fui
muito forte
existo novembro e
flores mortas
pintada do
sangue
dos
flamboyants
tenho dois olhos
cor de tempestade
e
um cansaço
ancestral
nos ossos
do não
dito
e tenho também
aquele grito
que nunca será voz
e aprisionado
não sabe senão
chover
Ilustração: Mark Catesby (1683-1749). (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_natural_history_of_Carolina,_Florida,_and_the_Bahama_Islands,_1754_Sturnus_niger_alis_supernis_rubino_colore._Alyrlus_Brabanticae_similis_Carolinensis_..._-_The_red_Wing%27d_Starling_(19119542623).jpg)
Natan Schäfer (Ibirama, 1991) é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e pela Université Lumière Lyon 2. Foi professor do curso de Bacharelado em Artes Visuais da UNESPAR, membro da Psychoanalytische Bibliothek Berlin e tradutor convidado nas residências Looren América Latina (Suíça) e Résidence Passa Porta (Bélgica). É autor de Taquaras (Contravento Editorial, 2022) e tradutor de, dentre outros, Por uma insubmissão poética (Sobinfluência, 2022) e La promenade de Vénus (Venus D’Ailleurs, 2022). Atualmente é responsável pela Contravento Editorial, também assinando a coluna "A Fresta" na página da editora Aboio. Além disso, dá a ver em desenhos, pinturas, escritos e fotografias algo da poesia que lhe atravessa.